Sempre voltei com muita regularidade à minha terra natal. Os oitocentos quilômetros que a separam de onde moro, terminaram, entretanto, a esparsar as minhas idas e vindas. Também me desestimularam de ter ali uma casa, onde passar fins de semana.
De lá, onde vivi até os onze anos e dez meses, tenho lembranças vívidas de uma infância muito feliz, em uma então pequena cidade do interior.
Uma dessas lembranças é de tão tenra idade, que precisei de alguém que dela me recordasse. É que ainda tenho por lá alguns parentes, e foi em um dos meus passeios habituais ao Crato, que reencontrei Maria da Penha. Prima em primeiríssimo grau do meu pai. Contadora talentosa de antigas histórias, o que sempre faz com muita graça.
Logo que cheguei à sua casa, Maria já começou a desfiar um rosário delas, que apesar de separadas pelo tempo, pareciam suceder-se em um encadeamento muito natural.
Logo de início, surpreendeu-me com uma na qual fui o protagonista! Entendi como uma homenagem especial que a mim fazia por minha visita.
Narrou, não sem antes explicar, que o seu pai Bernardo, meu tio-avô, costumava dar muitas boas risadas a cada vez que ele próprio contava a seguinte história que ouvira da minha mãe:
Eu tinha apenas cinco anos ou até um pouco menos! Brincava em casa com os meus brinquedos, e isso para mim devia ser muito importante e por demais prazeroso, para que eu pudesse admitir qualquer interrupção.
Foi quando minha mãe precisou que eu fizesse um favor. Mandou que eu calçasse as alpercatas, para conduzir à loja de meu pai a moça que levaria a merenda dele. Era assim que se chamava o "lanche" no português regionalista, e também castiço, do cariri cearense.
Só mesmo sendo aquela moça muito nova nos serviços da casa, para que eu, ainda tão pequeno, precisasse conduzi-la. Quem sabe era vinda "dos matos", para só assim não conseguir ir sozinha da nossa casa para a loja do meu pai! Além de ser muito perto, todos por lá conheciam a loja "Casa Jucá".
Confesso que só duas pessoas me fariam parar a brincadeira e ir. A outra estava esperando sua merenda.
Foi portanto com incrível má vontade, que só não era maior do que a minha obediência, que deixando de lado o essencial, eu fui. Fui sem querer ir.
O trajeto até a loja não levaria mais que cinco minutos andando devagar. Pois foi muito devagar que ao sair de casa caminhei pela mesma calçada, em direção ao chamado "beco do padre Lauro". Ali dobraríamos à direita.
Seguimos até lá islamicamente, com a moça caminhando a poucos metros atrás. Levava em uma das mãos um sanduíche enrolado em um guardanapo e na outra, um copo com um suco de frutas.
Ao chegarmos ao beco virei no sentido oposto. Uma rebelde guinada à esquerda. Me fiz gauche por temperamental. Prossegui distanciando-me cada vez mais do que seria o nosso destino final: a loja de meu pai. A pobre moça a me acompanhar pelo caminho que escolhi.
O longo trajeto que percorri até a loja, era mesmo o de quem não tinha nenhuma pressa em chegar. Um caminho para andarilhos amantes das longas distâncias a serem vencidas a pé. Quem sabe, não seria exagero dizer que fizemos na ida uma espécie de sightseeing.
Depois de descrever um semi-círculo no qual a loja ficou circunscrita, passei pela frente da igreja matriz que ficava atrás da nossa casa. Foi quando resolvi seguir direto para a loja. Finalmente chegamos, depois de ter andado a esmo por mais ou menos meia hora.
Entregue a merenda, restava fazer o caminho de volta. Cansado da caminhada, voltei pelo caminho normal.
Ao chegar em casa encontrei minha mãe ansiosa pela demora. Sua primeira pergunta, porém, dirigindo-se à moça que levara a merenda, foi:
- E então? Você aprendeu a ir só?
A moça, com toda a sinceridade, respondeu:
- Dona Alice, voltar eu sei! Ir, é que eu não aprendi não!
4 comentários:
Parabéns, seu belo texto meu pendeu do começo ao fim, sem fazer rodeios. Abraços.
jrios
Eita João! Obrigado! Desejo você sempre animado com os seus projetos. Um abraço!
O famoso beco do padre ! Me senti lá !
Elias, até recentemente ainda estava lá o frondoso sapotizeiro do padre Lauro Pita. Mas o que se conta do ciúme que ele tinha dos sapotis maduros que frequentemente caiam, é exemplo de avareza! :-(
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