Hoje me veio a imagem de um tio luminoso. Era um poeta literário por talento e um poeta da vida por vocação. Sempre o encontrava sereno e altivo, a inteligência a sair-lhe pelos olhos. Tinha arredor uma família enorme! Penso que ali mesmo, em meio a tantos filhos, encontrou o campo que melhor não haveria, para desenvolver, em meio a tantos problemas, a sua rara sabedoria.
Eu, ainda garoto, costumava viajar até a sua cidade e na casa dele passava férias inesquecíveis. Muitos primos, passeios e banhos de mar.
Havia o primo Miguel, quatro anos a mais do que eu. Ele viciara-se em drogas. Nada muito sério, diria-se hoje, apenas maconha e um pouco de álcool.
A luta do meu tio Antônio para salvar o filho ainda adolescente desse mal, foi sobretudo longa e comovente. Miguel e o tio Antônio ganharam algumas batalhas, mas, ao final, Miguel perderia a própria guerra.
Quem sabe a clarividência do meu tio, talvez decorrente do quanto ele era reflexivo e pragmático, o fez certo dia, protagonista principal de uma cena que eu jamais esqueceria. Esse fato serviu-me de uma grande lição.
Anoitecia, e o tio Antônio acabara de voltar do trabalho. Como sempre, ao chegar, dele se acercavam os filhos menores. Alvoroçados. Saltitantes. Barulhentos. Até alguns dos filhos maiores, também aproximavam-se para recebê-lo.
Sorridente ele entrava em casa um pouco cambaleante, pois já sofria de um tipo de ataxia (doença de Machado Joseph) que, por hereditariedade acomete muitos da minha família.
Costumava logo ao entrar em casa, chamar por sua mulher, a minha tia Carolina. Às vezes ele trazia o pão. Nesse dia, após a habitual recepção da chegada, finalmente ficou quase só na sala. Quase só, porque de longe eu o observava.
Ele tirou o seu paletó de linho branco, e o atirou, não tão cuidadosamente, sobre a cadeira mais próxima. A pressa para livrar-se da gravata, me pareceu ainda maior. O destino da gravata foi o mesmo.
Dirigiu-se então ao armário. A casa nesse instante estava incrivelmente quieta. Do armário retirou uma caixa, de onde sacou uma bela flauta transversal.
Logo soaram os seus primeiros acordes, quando de repente, chegou um mensageiro apressado, que o surpreendeu, interrompendo-o com um grande espanto no olhar. Era urgente. Ele precisava vir... Era o Miguel outra vez que estava fora de si, e agora portava uma arma. Estava na praça e causava um alvoroço geral. Estava muito alterado!
Senti-me chocado com aquela notícia, e por aquela interrupção brusca em momento tão pacífico, tão sereno. Pareceu então que ali o céu e o inferno se juntavam.
Indescritível foi a expressão do meu tio, que a ele conferia inabalável serenidade misturada com tristeza e compaixão.
Eu assisti, então, após retomar a si depois daquela notícia, a compaixão que o meu tio Antônio permitiu-se sentir por si mesmo. Retomou a flauta. Desta vez ela soou melodiosa, lindamente musical, límpida e esplendorosa.
Os anos então passaram, Miguel já havia se suicidado e o tio Antônio também gozava do "descanso eterno". Até a casa em que moraram já fora vendida. Voltei à Porto da Folha das minhas férias de fim de ano, e caminhei pelas ruas há muito conhecidas. Mas o que eu queria mesmo era rever a casa dos tios Antônio e Carolina. A casa estava lá! Incrivelmente igual.
A sabedoria do tio Antônio me parecia ter bases psicoanalíticas. Por isso de lá voltei remoendo uma estranha sensação. Bem à frente da casa, onde ficava um pequeno jardim, agora lia-se em uma pequena placa: Casa de Estudos Freudianos.
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