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domingo, 19 de abril de 2015

Crescer e Acreditar - Ato IV (4/4)



Para concluir, escolhi contar um fato de natureza pessoal, para mim tão marcante que seria inesquecível. 

Era final de ano letivo, e eu estava às voltas com os últimos exames, sendo a disciplina da vez o francês. 

O professor desta matéria chamava-se Andrelino, e era muito exigente! Mas a exigência era um traço comum aos nossos professores, ao qual já estávamos acostumados. 

Andrelino apreciava os alunos mais estudiosos na mesma medida em que era carrasco com aqueles que negligenciavam os estudos.

Era magrinho, baixinho, menor até do que muitos dos meninos seus alunos. Costumava repreender quem fazia algo errado, dizendo: não faça isso, você é um bom menino! Daí veio o seu apelido: Andrelino bom menino.

A prova final de francês impunha aprender a conjugação de 42  verbos. Sim! Quarenta e dois!

Havia uma prova escrita, e depois a prova oral, e esta baseava-se exclusivamente na conjugação de verbos.

A prova oral ocorria na presença de toda a turma. Cada aluno aguardava a sua vez, e quando chamado ia à frente e sorteava o próprio ponto.

Tão logo do globo metálico caía a bolinha numerada, a entregávamos ao professor Andrelino, que verificava em uma relação a que verbos aquele ponto sorteado correspondia.  A cada ponto correspondiam dois verbos.

Talvez por botar alguma fé na prova escrita que já fizera, o fato é que dos 42 verbos eu havia estudado apenas 2: os verbos "croître" e "croire", cujos significados são "crescer" e "acreditar". 

Talvez, para mim, "crescer" estivesse a significar crescer em confiança na sorte, na qual pretendi "acreditar".


O fato é que, convidado a sortear o ponto, o número que tirei correspondeu exatamente a esses dois únicos verbos que eu aprendera, e muito bem. Era aquilo a que se poderia chamar de "saber de cor e salteado".

Senti uma repentina mudança do estado de tensão para alívio, e seguiu-se um contentamento que precisei controlar, para não virar uma alegria incontida.

A segurança, porém, essa sim era adequado demonstrar. Esbanjei então segurança. Conjugaria esses dois verbos como se fosse um francês. Talvez, nem todos os franceses!

O professor Andrelino me levou de um tempo verbal para outro, do jeito que bem quis e entendeu. Até pareceu, a partir de quando percebeu que eu tudo sabia, querer perguntar ainda mais, só para me dar a oportunidade de me exibir.

Quando finalmente se deu por satisfeito, abriu a caderneta, e concedeu-me a nota máxima. Tirei dez! E o professor Andrelino pareceu empolgado. 

Dirigindo-se à turma, ele disse: e então? Vocês viram? Ele mereceu a nota dez! 

Fez uma pausa, e acrescentou: Viram agora o que é estudar?

No Nóbrega, aprendi grandes lições. Até mesmo aprendi que nem tudo que parece, É!

Crescer e Acreditar - Ato III (3/4)




A foto que usei para ilustrar essas reminiscências, mostra como éramos ao cursar o terceiro ano ginasial, no ano de 1960.

A fotografia faz assim! Ela rouba uma nesga do tempo. O faz quase como que por vingança. E o eterniza! 

Numerei cada um de nós, e fiz um exercício de memória ao tentar nomear. Valia relembrar mesmo pelos apelidos, seja lá quais fossem.

Mas não cabem na foto todos os colegas do Nóbrega de quem me lembro! Nela não estão: Oscar, Henrique Fürusteck Notari, Guilherme e Henrique Bastos, Fernandão, Leonildo, Petrônio, Alfredo, Romangeira, Piu, Pepino, Gildo Neves Batista, Stanley Michausky II, Marcelo Lobinho e tantos outros.

Os presentes na foto são:

1- Carneiro Leão

Certo dia, ao reconhecê-lo na autoria de um livro, tratei de ler. Escreve também para jornais. É um excelente contador de histórias e escritor.

2- Alceu Valença

A música popular nordestina e brasileira não seria a mesma sem ele! No colégio gostava muito de jogar basquete. Acreditou sempre no seu talento artístico. E houve uns tempos, antes de encontrar o pleno sucesso, que tinha uma parceria com outro artista da região, no campo musical, Tiago Araripe. Formou-se em direito mas tornou-se mesmo um grande artista, cantor, compositor e, recentemente, cineasta.

3- José Maria

Lembro que nadava muito bem! 

4- Airton Guedes Alcoforado (professor de matemática)

Que tive o prazer de rever anos passados, quando me disse mais uma vez que "a recíproca é verdadeira".

5- Padre Lyra

Não só os índios, mas também os grandes personagens, costumam ganhar um adjetivo para acompanhar-lhes os nomes. E desse modo revelar um pouco mais de si. Assim, temos: Touro "Sentado", Alexandre "O Grande", Aníbal "O Conquistador"... Quem sabe ao padre Lyra, nas suas funções acadêmicas, lhe coubesse chamar: padre Lyra "O Severo".

6- Alexandre da Fonte.

7- Pedro Cansanção

Pense numa pessoa alegre! Tinha sempre um sorriso estampado no rosto. Soube que é empresário em Alagoas, e que mantém essa característica.

8- Jerônimo

Sinônimo de atleta. Jogava muito bem o futebol, mas não somente o futebol, pois tinha grande habilidade para os esportes em geral. Soube que já faleceu.

9- Leonardo Lins Cavalcanti

Foi meu contemporâneo no Nóbrega, e também na Chesf, empresa onde exerci a minha profissão de engenheiro eletricista. Um dia, ao me encontrar, depois de ambos aposentados, comentou que ao me ver, era sempre levado a recuar aos tempos do Nóbrega. Embora tendo se aposentado da Chesf, Leonardo continua a trabalhar na área da engenharia elétrica, enriquecendo, e como,  os quadros da Eletrobras. Atualmente mora no Rio de Janeiro.

10- 

11- Dario

12- Pedro Lagreca

13- Marcos Ferraz

Embora não tenha nunca mais reencontrado Marcos Ferraz, sei que ele está bem. Conheci o irmão dele, Alexandre Ferraz, que me deu notícias.

14- José Jucá Júnior

Minha presença no Nóbrega, estranhamente decorreria de um fato acontecido a 800 km dali, antes mesmo de eu ter nascido. Devo-a em primeiro lugar ao tio avô Tonho, do sítio São José, no Cariri do Ceará. Ele chamou seu filho Pedro, e disse: meu filho, amanhã acorde cedo! O trem para Fortaleza sai do Crato de madrugada. Você vai nele, que é para estudar para ser padre. Padre Pedro se ordenaria jesuíta, e até criaria o Departamento de Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco, da qual também foi vice-reitor. A minha mãe, através dele, já que eu atendia tão bem a todos os requisitos, conseguiria uma vaga de bolsista pela qual lá estudei. É muito estranho como fatos que aparentemente nada têm a ver conosco podem influenciar as nossas vidas!

15- Belo

16- José Maria Pereira Gomes

Descobri com admiração que José Maria é irmão de "Antonio Pereira Gomes", meu contemporâneo na Chesf, com quem vim a ter maior aproximação após nossas aposentadorias. Costumamos mensalmente nos reunir, juntamente com outros ex-colegas de trabalho e amigos, para almoçar e celebrar a vida.

José Maria é médico cardiologista, e já me disse que será um grande prazer um dia fazer em mim um cateterismo.

17- 

18-  

19- 

20- Flávio

Lembro que Flávio falava muito, falava alto, e falava ligeiro. 

21- 

22- 

23- Afonso

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25- Milton Catoteiro

Reencontrei Milton em um evento social! Conversamos sobre os tempos do Nóbrega, mas não o relembrei desse seu apelido. Atualmente ele mora em Natal. É médico psiquiatra. 

26- 

27- Carrapeta

28- Edson

29- 

30- Saulo 

Vez ou outra, precisei ser atendido na Clínica Ortopédica dos Acidentados, durante o tempo em que tive moto. Certa vez, fui atendido por Saulo, quando então soube que tornara-se médico ortopedista, um dos sócios da clínica, e professor da faculdade de medicina. Não deve ter ficado um único ossinho daquele esqueleto do laboratório que ele não tivesse decorado, ainda menino, e para jamais esquecer. Atualmente está aposentado.

31- Helio Lima Filho

Helio dividia com Leonardo Lins a classificação de melhor aluno da turma. A minha percepção era a de que Helio parecia estudar muito, o que talvez fosse acentuado pela sua aparência sempre estressada. Nisso contrastava com Leonardo, que aparentava calma, e confundia-se com os demais que encontravam tempo para os esportes. Helio Lima Filho abandonou o curso de Direito na metade, quando descobriu que era ainda maior o seu interesse pela medicina. Nunca mais tive notícias dele.

32- 

33- Luiz Otávio Cavalcanti

Também o encontrei em um evento social, e até trocamos uma meia dúzia de palavras. Ele ocupou cargo de secretário de estado durante um dos governos estaduais, e costuma escrever para jornais sobre temas políticos.

34- Francisco Emanuel Soares

Um dia, perguntei a José Maria (Pereira Gomes) por Emanuel, de quem guardei a imagem do "menino diplomata". Um verdadeiro gentleman, era naturalmente articulado e tinha sempre muitos amigos arredor. Em tempos de internet, não demorou para que José Maria nos colocar em contato, e trocamos e-mails! Emanuel mora em São Paulo, e atualmente é um alto executivo da GE.

35- 

36-

37- Luiz Fabiano

Fabiano era filho de uma senhora que trabalhava na secretaria do Nóbrega. Tinha uma irmã e gostava de jogar basquete.

38- Helio Veloso


39- Marcos Pérez Queirós

Ouvi tempos atrás algumas referências ao nome dele, quando foi deputado federal  pelo estado de Pernambuco.

40- Júlio Maranhão

Um dia, ao visitar o Museu do Instituto Ricardo Brennand, vi algumas peças doadas por Júlio Maranhão, e pensei que poderiam ser do Júlio, nosso colega de turma do Nóbrega. Depois eu viria a saber que foram doações feitas por seu pai, já que nosso colega Júlio lamentavelmente morreu muito cedo, de maneira trágica. 



Por fim, o Colégio Nóbrega hoje não mais funciona. Muitos dos educadores responsáveis por seu admirável padrão de ensino até já faleceram.

Resta o imponente prédio, e na sua vasta área, que se expandia para o outro lado da Rua do Príncipe, funciona hoje a Universidade Católica de Pernambuco.

Entre os padres, alguns assim permaneceram, e outros deixaram a ordem, seguindo diferentes caminhos. Se, por um lado, seus quadros por isso se empobreceram, a psicanálise em Pernambuco teve muito a ganhar com a dedicação de alguns deles a esta área.

Certo dia, terminei por reconhecer à frente do Centro de Estudos Freudianos do Recife, a figura que me fora tão familiar no Nóbrega, do ex-padre Ivan Correia, atualmente um psicanalista de fama internacional.

Continua no Ato IV (4/4).

Crescer e Acreditar - Ato II (2/4).



Também Salgueiro, o nosso professor de geometria descritiva, viria, muito tempo após o episódio envolvendo o padre Borges, a ser mais uma vítima dos birôs sobre estrados no nosso colégio.


Salgueiro era um excelente professor! Mas tinha em comum com o padre Borges o jeito de sentar e inclinar a cadeira, para se recostar na parede.

Quis o senso de observação, e a criatividade de algum "poltergeist", inventar algo que também viria a enfurecê-lo e, mais uma vez, todos terminariam por "pagar o pato".

Quando de volta à posição normal, o professor Salgueiro costumava tocar com as mãos no birô, que inevitavelmente sofria um empurrão para a frente!

Um dia, antes que ele entrasse para dar aula, o birô foi cuidadosamente afastado sobre o estrado, de maneira que seus pés dianteiros de cima dele caíssem ao menor empurrão, fazendo tombar o birô. 

Esse foi outro início de aula esperado com enorme expectativa, e outra vez, deu tudo muito certo! Foi uma alegria geral! Impossível não rirmos, nós que andávamos sempre em busca de diversão! 

Difícil era conter-se diante do pálido Salgueiro, que se refazendo do susto, disse algo que nos ajudaria a parar de rir. Ele disse: A posição  em pé, na sala de aula, é a que o professor escolhe para aplicar prova.

E mandando que alguém fosse buscar papel na secretaria, aplicou um desses exames que por não estar programado, pegaria a maioria despreparada.

Portanto, manter-se com a matéria em dia, teria no Nóbrega o significado de prevenir-se do revide preferido por parte dos professores, em caso de eventuais brincadeiras.

Gostaria que esses e os demais mestres aqui citados, caso venham a conhecer essas minhas lembranças, as vejam como uma carinhosa homenagem pelo que muitas vezes precisaram passar, a fim de contribuir tão bem para a nossa formação. 


Havia no Nóbrega um padre português extremamente nervoso, chamado "Irmão Barbosa", cuja função principal era ficar em sala, a tomar conta dos alunos que cumpriam castigo.

Perdia a paciência com facilidade, quando havia alguma tentativa de conversa de uns alunos com os outros. Atrapalhava-se ao pedir silêncio, repetindo sempre: acabem com o silêncio!

As tentativas de conversas viravam então risos abafados, enquanto ele aumentava o tom: já falei para acabarem com o silêncio!

O professor Paulo, de química, era químico. E para ele, os alunos olhavam com muita admiração e respeito. O motivo era que trazia no corpo marcas de uma explosão decorrente de uma experiência de laboratório mal sucedida. Sempre achei essa admiração que meus colegas a ele devotavam, decorrente de um fato que a tornava paradoxal!

Na realidade não havia um único professor que não trouxesse consigo uma marca, ou que não pudesse ainda hoje ser lembrado por algo de bom que fez, ou até mesmo por algum mal que deixou de fazer. 


Assim, outro de nossos memoráveis professores, o professor de Física, Câmera Lima, era alegre, brincalhão e provocador. Certa vez mandou que resolvêssemos em casa um problema em que propositalmente omitira um dado, sem o qual seria impossível solucioná-lo. 

Também durante as provas, para testar o grau de segurança e auto-confiança dos alunos, costumava alertar para que tivéssemos cuidado com as "cascas de banana" que pusera em algumas questões, as quais embora aparentemente simples, na verdade não eram. Um exemplo de um mal que de fato quase nunca ele fez. 

O professor Mário Cruz, de nacionalidade portuguesa, ensinava português. Lembro de quando dizia: se você quiser enfatizar a sua resposta dizendo não, para fazê-lo de forma contundente, repita três vezes: Não, não e não!

Lembro-me dele quando me oferecem sorvete, ou outras coisas de que gosto muito. Aproveito para dizer: Sim, sim, e sim!


A disciplina de música, era denominada Canto Orfeônico, e o professor chamava-se Isnard Mariano, mas tinha o apelido de Bolinha. Não sei ao certo se por ser gordinho, ou se porque em suas aulas faziam guerra de bolinhas de papel.

Fico feliz de jamais ter participado disso. Hoje, não me sentiria bem! Além de tudo, o professor Isnard era deficiente visual.

O Costa Cavalcanti, professor de matemática durante o curso ginasial, era irmão do então presidente da Hidroelétrica Itaipu Binacional. Era uma pessoa adorável! De uma boa fé que nunca esqueci. 

Adotava um livro de autoria do professor Ary Quintella, do qual prometia selecionar as questões de todas as provas. Presenciei, durante um dos exames, um aluno afirmar que determinada questão não havia sido tirada do livro texto, conforme prometido.

O professor Costa Cavalcanti, com muita calma, voz mansa, e sempre muito paciente, respondeu com naturalidade: tirei sim do livro, e essa questão encontra-se resolvida, à página tal. Quem estudou saberá fazê-la.

Essa indicação era tudo que o autor da pergunta e outros arredor esperavam, para iniciar suas ações dissimuladas em direção à "fila", usando para tal a consulta ao próprio livro na página que agora bem sabiam.

Outro importante professor de matemática, durante os anos de curso científico, foi o Airton Guedes Alcoforado. Grande professor, e muito exigente em sala, culminando com o que pedia nos exames.

Costumava dar aulas de terno de linho branco, em contraste com a batina tão preta do padre Borges. E se o padre Borges me afastou da medicina, o professor Airton, sem saber, me direcionou para a engenharia.

Há poucos anos, encontrei-o em um evento social. Embora ele não pudesse me reconhecer, fui até ele, me reapresentei, e tive o prazer de conversar um pouco. Por não perder o costume, foi que ao dele me despedir, respondeu-me de um modo que me soou muito familiar e me transportou ao passado.

Eu disse do prazer de tê-lo reencontrado. E a mim, ele respondeu: a recíproca é verdadeira!

Belo reencontro!

Continua no Ato III (3/4).

Crescer e Acreditar - Ato I (1/4).


No início da década de sessenta, os colégios particulares mistos ainda estavam fora do horizonte. Meninos eram educados por homens, e meninas por mulheres. Em geral religiosos, e principalmente católicos romanos.

Em Recife, onde passei a morar a partir de março de 1959, os principais colégios, por ordem alfabética, eram: colégios femininos havia o Damas, São José e Vera Cruz. Entre os masculinos, Marista, Nóbrega e Salesiano.

A tradição jesuítica de competência educacional, levava a que, entre os colégios masculinos, a classe rica ocupasse uma quantidade considerável de vagas no Colégio Nóbrega.

Isso tornaria a mudança que vivi, ao sair de uma pequena cidade provinciana para uma grande capital, ainda mais contrastante.

Ao estudar no Nóbrega, a partir do segundo ano ginasial, contribuí para que o seu quadro de alunos pudesse ser considerado representativo da sociedade como um todo, pela presença nele de estudantes de diferentes classes sociais.

Os colegas ricos eram em maioria originários de famílias de grandes usineiros ou políticos do estado, ou de políticos usineiros.

Um dia, alguns deles fizeram tão grande insubordinação, que chegou a envolver a profanação da igreja do colégio, atualmente considerada santuário de peregrinação pelo Vaticano.

Só muito tempo depois eu pude entender porque um caso passível de expulsão sumária resultou apenas em punições relativamente brandas.

Eles eram ricos, políticos e poderosos.

O aspecto disciplinar, contudo, era levado muito a sério pelos padres! Certo dia, após o recreio, por não ter atendido prontamente à chamada para o retorno à sala de aula, fui punido. 

O castigo foi ser obrigado a comparecer ao colégio fora do expediente das aulas, e permanecer por algumas horas em uma sala, junto a outros colegas que ali estavam por infrações diversas.

A excelência do laboratório de ciências do Nóbrega me fazia lembrar o Colégio Diocesano do Crato, onde o laboratório de ciências também era valorizado. Em ambos havia um esqueleto completo, e a orientação da disciplina era voltada sobretudo para a área das Ciências Médicas.

Por uns tempos até pensei que terminaria estudando medicina, pois até já começara a decorar os ossos todos do corpo humano, a partir das mãos.

Foi certamente por isso que décadas depois, ao sofrer um acidente de moto que resultou em fratura, não fiquei surpreso quando o médico anunciou: fratura exposta, no terço médio do rádio. 

Não viria a ser médico, por dois motivos principais: o primeiro, teria sido o padre Borges, meu professor de Ciências, que involuntariamente, por não ter a melhor didática, me motivou a tomar outra direção. O segundo, foi que eu continuava a desmaiar ao ver sangue, o  que seria péssimo se viesse a acontecer na presença de um paciente.

A propósito, o padre Borges era alto, calvo no topo da cabeça e usava sempre uma batina preta, em contraste com a maioria dos padres jesuítas, seus colegas de ordem, que preferiam as de cor bege.

Os birôs dos professores em sala de aulas ficavam sobre estrados para que, sentados, tivessem uma boa visão geral dos alunos, e estes também do professor.

O padre Borges costumava, ao sentar, inclinar a cadeira, que ficava apoiada apenas nas pernas de trás. Encostava então a cabeça na parede, e nessa posição, que sempre me pareceu privilegiada, aguardava que toda sala estivesse em completo silêncio, para finalmente fazer a chamada e dar início à aula.

Certo dia, antes do início da aula, alguém teve a ideia de desenhar na parede por trás do birô, onde era esperado que como sempre ele encostasse a cabeça, um par de belos chifres.

Não me lembro de que, até então, o início de uma aula tivesse despertado tanta excitação em nossa turma. A ansiedade era geral, e portanto ninguém pagaria injustamente o castigo que viria depois.

Deu tudo muito certo! Isto é, errado mesmo, só deu para o aborrecível padre Borges, que por qualquer coisa se irritava. Imagine havendo uma justíssima razão!

Ao colar a cabeça no lugar habitual da parede, por ela já esperava aquele desenho bovino, ou satânico, que lhe compôs a figura, e disparou as gargalhadas simultâneas de toda meninada. Ainda mais hilariante foi a vítima demorar a perceber o ridículo por que passava.

O padre Borges era pálido, mas de súbito fez-se rubro e encolerizado. Não houve aula nesse dia, a princípio, pela espera de que o autor se apresentasse, o que não aconteceu. Em seguida, porque toda a turma terminaria punida, com a aplicação de uma prova surpresa de ciências, em lugar da aula.

A comunicação oficial da indisciplina pelo padre Borges à sub-diretoria do colégio, à época a cargo do simpático padre Santana, incluiria os seguintes termos: ... portanto, peço a punição desta turma, por ter desenhado chifres à "crayon", na parede da sala de aula.

Alguns padres tropeçavam nas dificuldades do ofício, mas a maioria, não!

Continua no Ato II (2/4).

terça-feira, 14 de abril de 2015

Eureka!



O campus da antiga e imensa Universidade de Manchester fervilhava de estudantes de quase todas as partes do mundo.

No coração do seu Instituto de Ciências e Tecnologia, há uma impressionante estátua que até hoje me atrai, por sua adequação ao ambiente: Arquimedes!

Aquele bloco de pedra representando o memorável inventor, físico, matemático, filósofo e engenheiro, que saindo da banheira fascinado pela descoberta da lei da impulsão, grita: EUREKA!

Arquimedes ali permanece estático em seu momento de êxtase, há décadas, à frente do prédio onde mais se aglomeram os estudantes: o Diretório Acadêmico, ou "Student Union".

Ali me parecia a babel preferida pelos que, em certos momentos, principalmente após as aulas, agrupavam-se para se dividir em torno de diferentes atividades dos seus interesses.

Certa noite estando eu à frente do prédio, presenciei através da sua ampla fachada envidraçada, uma cena emblemática da Inglaterra que então eu descobria.

Enquanto observava, lembro que pensei: talvez jamais esqueça o que estou vendo!

Em dois andares contíguos, havia duas salas imensas, uma localizada exatamente sobre a outra.

Na sala de baixo, uma "Quiet Room", onde os estudantes arredor de mesas, dispostas a certa distância umas das outras, quedavam-se imóveis em profunda concentração em suas leituras.

Na sala do andar de cima, as luzes estroboscópicas, a banda pop, cervejas e os movimentos de dança, em contraste que maior não poderia haver, com o que acontecia poucos metros abaixo.

O respeito, e sobretudo a capacidade de convivência entre os diferentes, já se tornara ali uma característica sempre muito presente.

Na Inglaterra do início da década de 70, os folhetos que recepcionavam os novos estudantes do UMIST (University of Manchester Institute of Science and Technology), eram elaborados em bases informativas do mais amplo espectro.

Não seria possível ler um dos seus itens sem lembrar de Alan Turing, Oscar Wilde  e outros homossexuais que naquele país viveram, e cujas vidas foram arruinadas pela repressão, da qual estariam livres se tivessem nascido, respectivamente, 30 e 80 anos depois.

Dizia um dos itens: se você é um estudante homossexual, temos a Associação dos Estudantes Homossexuais... Informava então local, horário, periodicidade das reuniões e telefone para contato.

Pela presença internacional em Manchester, representada por alunos de todos os continentes, mais do que uma imersão na cultura inglesa, ali era possível através de muitos dos colegas, satisfazer curiosidades sobre a cultura de diversos países muito diferentes.

Assim é que guardo na lembrança a admiração com que alguns de nós, jovens estudantes ocidentais, olhávamos para o nosso colega Libanês, Banun. Ele era muçulmano, e um dia comentou ser casado com três mulheres.

Depois ficaríamos tristes e pensativos, quando passamos a nos questionar se isso valia mesmo a pena, considerando que, de repente, Banun sumiu da universidade, porque estourou um conflito no Líbano ao qual ele foi obrigado a se integrar.

Havia um chinesinho magro e despenteado, que andava arrastando os pés pelo chão, e que dava cochilos enormes durante as aulas. Era a um ponto de quase bater com o queixo na carteira. 

Um dia me perguntou se eu teria algo para ele ler e assim se informar sobre o Brasil. Eu levei para ele a única coisa que encontrei, uma edição especial da Revista Manchete sobre o país. 

Ele folheou a revista para lá e para cá, e rapidamente me devolveu dizendo que ali só havia propaganda. Ele tinha razão. Era um chinês inteligente, esclarecido e mal educado.

Aproximar-se de um cubano, e indagar sobre questões da vida em seu país, naquela época, era algo que parecia equivaler a uma meia visita a Cuba.

Descobrir identidade com os persas, e com um deles fazer amizade, também foi inusitado. 

Zia Ziai viera de carro, no seu pequeno mini Austin, da Pérsia até a Inglaterra, para estudos sobre a preservação do meio ambiente. Trouxera muitos tapetes persas, para em caso de necessidade vendê-los.

Nós nos visitávamos, e foi através dele que pela primeira vez comi pistache, aprendi alguns detalhes sobre a manufatura de tapetes persas, e conheci alguns "Pubs" interessantes, naturalmente tudo isso antes do início das aulas.

Em um desses "Pubs", frequentado pelas mesmas pessoas desde o início do século XX, quando ainda eram jovens, a média de idade dos frequentadores parecia agora beirar os 90 anos!

Ziai me preveniu que os tapetes persas mais valiosos são os mais antigos, cujos fios, quando examinados em detalhe, parecem ainda mais unidos entre si. É o aspecto que adquirem após longo tempo de uso.

Alertou então, para que fabricantes desonestos, põem seus tapetes na calçada, para que os transeuntes passem por cima deles, e assim logo adquiram a aparência de tapetes antigos, embora que igual aos antigos só tenham o preço.

Esquisita era a figura do mais rico dos persas, filho de um dos maiores industriais da Pérsia à época do Xá Reza Pahlavi.

Seu sapato de salto alto, suas calças agarradas às pernas, seus cabelos até os ombros, terminaram por lhe conferir um apelido.

O curioso é que "bichaldo" estava permanentemente cercado por um séquito de não menos que seis pessoas, estando ele sempre no centro. 

Em meio a tanta gente de todas as partes do mundo, eu terminaria um dia, ao visitar pela primeira vez o chamado Ferranti Building, local do "Staff" na área de Sistemas Elétricos de Potência, a finalmente encontrar um brasileiro no norte da Inglaterra.

Como tudo é relativo, acostumei-me a tratá-lo por Mestre Barros, pois era muito mais velho que eu, queixando-se sempre de já ter 42 anos!

Mestre Barros, além de brasileiro, era, assim como eu, natural do Ceará, o que veio a confirmar o sentimento de que cearenses estão presentes em toda parte. Talvez onde menos estejam, dizem alguns, seja no próprio estado do Ceará.  

Os meses passavam, e eu já me sentia cada vez mais à vontade na minha nova vida, em especial pela gradativa familiaridade com a língua.

Foi quando certo dia dirigiu-se a mim um inglês, que depois saberia ser um contínuo da universidade, e me disse algo que não entendi.

Pedi então para que repetisse, mas, outra vez, não entendi. Pedi-lhe então que falasse mais devagar, o que não adiantou. 

Senti-me a principio um tanto quanto frustrado, pois já fazia um certo tempo que eu havia chegado!

Resolvi então desistir, e disse-lhe: o senhor me desculpe, mas não consigo entendê-lo!

Foi quando o homem falou de modo para mim compreensível, ao perguntar: Você não é egípcio?

Ele me desejara bom dia em árabe.

O que se seguiria terminaria digno de menção.

Ele então me perguntou de onde eu era, e respondi: sou do Brasil, sou brasileiro.

Ah!!! Exclamou então o homem, dizendo: Buenos Dias!

Expliquei: no Brasil falamos Português. Buenos Dias é espanhol!

Imediatamente ele insistiu: Oh! Bonjour!

Eu lhe disse: não! Bonjour é "good morning" em francês!

Nova tentativa dele então: Buongiorno!

Disse-lhe: desculpe mas Buongiorno é "good morning" em italiano!

E acrescentei: em português, diz-se "Bom Dia".

Ele olhou para mim com uma expressão de grande espanto e admiração, e perguntou: VOCÊ FALA TODAS ESSAS LÍNGUAS? 

sábado, 11 de abril de 2015

Bacurau.


Houve um tempo em que após o jantar, as cadeiras iam para as calçadas, e as pessoas nelas sentadas, só entravam quando dava sono.

Esse costume parecia mais arraigado nas cidades do interior. Por isso, cresci no Crato habituado a escutar as conversas dos adultos nas calçadas que os meus pais visitavam.

Quase sempre eram as mesmas calçadas, de familiares dele, e a mais frequentada era a da casa de Vivina, prima do meu pai.

Ficava ao lado da igreja matriz, em uma rua mais larga do que o normal, de frente a uma imensa praça (vista com os meus olhos de criança) chamada praça da Sé, e a menos de cinco minutos a pé da nossa casa.

Dava gosto ouvir Vivina contar as suas histórias, seja lá quais fossem. Havia muita vida e graça em tudo o que ela dizia. O mais simples fato do cotidiano, ganhava dramaticidade e humor. Sobretudo fino humor!

Ela tinha olhos grandes, voz grave, falava com todo o corpo, e demonstrava grande inteligência por todas as suas articulações. 

Uma das histórias que relembro, das que eram contadas à calçada, revela um pouco da sua peculiaridade.

Formar os filhos, àquela época, era levá-los à conclusão do então chamado curso científico ou curso clássico. Vivina e seu marido Joaquim (Quinco) Landim, já haviam conseguido isso quase com todos os filhos, pois só faltava o Zé Landim. 

Garoto levado e de enorme disposição para as brincadeiras, ele ia sempre empurrando com a barriga a conclusão do atual ensino médio. Parece que resolvera ser dono das suas prioridades.

No futebol era goleiro, e nos jogos mais importantes, que a rádio local transmitia, jamais Vivina poderia saber que era o seu próprio filho aquele a quem chamavam de "Bacurau', e que a todos entusiasmava por tantas bolas que defendia.

E quanto a terminar o segundo grau, o tempo passava e nada acontecia.

Não lembro que a paciência fosse uma característica predominante da inteligente e bem humorada Vivina. Pareço estar certo, pelo que não demoraria a acontecer.

Um dia, sem que por isso ninguém esperasse, ela segurou pelo braço o Zé Landim, e disse: pois vai ser hoje, seu cabra. Você agora não me escapa.

Quem hoje for ao Crato, ainda encontrará na antiga rua da Vala o tradicional Foto Saraiva, que há mais de 70 anos funciona no mesmo lugar. Para lá seguiu Vivina com o Zé Landim a tiracolo.

Não demoraria para que, feita a foto, a parede da sala da sua casa a recebesse emoldurada. Era a única foto que ali faltava, e agora juntava-se às demais. Com o Zé Landim de beca e capelo, Vivina completava a sua galeria de filhos formados.

Formei tudim!, dizia Vivina orgulhosa e aliviada. E prosseguia: o que faltava, não tive paciência! Mandei tirar o retrato de formatura, e está lá na parede pregado, junto com os outros. Missão cumprida, agora sim estão todos formados!


sexta-feira, 10 de abril de 2015

Sobre Maria.


A única vez que estive em Iguatu, cidade sede dos Jucás, uma das muitas primas do meu pai, Dodó, aproximou-se de mim e confidenciou: você sabe, meu filho, seu avô Honório (meu avô paterno), foi aqui em Iguatu, muito feliz! Foi onde ele conheceu a sua avó Maria (na foto), o amor da vida dele.

Achei essa revelação fantástica! Ela me foi feita em tom de confidência, como se até as paredes ainda não pudessem saber. E não tivesse acontecido ali, da forma que foi, não teria sido mais. Dodó teve um incomum senso de oportunidade.

Continuando, ela disse: pena que ficaram juntos tão pouco tempo. Quando sua avó morreu, aos 22 anos, seu pai ainda não havia completado 2 anos!

Nunca vi seu avô tão triste!, ela prosseguiu. Na verdade, ele nunca a esqueceu. Anos depois voltaria a casar, com Loló, que era prima dele. Mas, mesmo depois do segundo casamento, ele continuava a fazer versos para a sua avó. Para que Loló não descobrisse, levava todos para nossa prima Vivina. Vivina tinha uma caixa onde guardava tudo que ele escrevia para Maria. Loló tinha muito ciúme do seu avô, por causa de alguém que já havia morrido!

E Dodó me perguntou: você gostaria de visitar o túmulo da sua avó Maria? É muito fácil de encontrar, pois fica próximo da entrada principal do cemitério da cidade.

Para lá me dirigi, e não demorei a encontrar o jazigo. Surpreendeu-me que havia sinais de que alguém dele cuidava com muito zelo.

Eu sempre ouvi meu pai dizer que a noite de Natal jamais pode ser feliz para ele, porque nela perdeu, ainda criança, a própria mãe.

Olhar então para aquela placa no túmulo, foi a confirmação física daquela triste realidade:

Saudosa Memoria De
Maria Hollanda Jucá,
Fallecida A 24 De Dezº1913,
Perenes Saudades
De Seu Esposo E Filho.

Fácil foi saber onde morava quem cuidava do jazigo. Fui dali ao Alto dos Jucás conhecer o Sr Egídio, e descobrir sua relação de parentesco com a minha avó.

Meu pai também comentava que o casamento dos seus pais acontecera contra a vontade da família Holanda, à qual pertencia a minha avó. Por isso eles "casaram fugidos".

Com a morte dela, que poderia ter sido evitada caso já existisse a penicilina, o meu avô levou o filho, quase ainda bebê, para ser criado pelas irmãs dele, minhas tias-avós.

A partir daí não haveria mais nenhum contato do meu pai com a família da mãe dele, exceto por um ou outro primo, como foi o caso do monsenhor Francisco Holanda Montenegro.

Na casa do Sr Egídio, esperei por sua chegada. Ele era um homem saudável, robusto, que aos 80 anos ainda pedalava uma bicicleta com vigor.

Era sobrinho da minha avó, filho de uma irmã dela. Ao vê-lo, tive o sentimento de resgate de uma história que terminara antes mesmo de começar.

Pareceu surpreso com a minha súbita aparição. Quis saber sobre a descendência de meu pai, e lamentou a notícia de que ele já havia morrido.

Disse-me ele: nada mais soubemos depois da morte da tia Maria, sobre esse ramo da família originado por seu pai. Conversou sobre os nossos ancestrais, e sobre o interesse de um de seus filhos no levantamento da genealogia da família, e que ele certamente gostaria de me conhecer.

Este foi o meu último contato com esse elo familiar perdido no tempo, pelo choque de vontades. Na vida real, os finais não costumam ser tão emocionantes e espetaculares quanto os criados na ficção.

Isso tudo me pareceu exemplar de como, apesar dos laços biológicos, os tempos perdidos de convivência, são tempos irrecuperáveis. Afinal, não é possível resgatar o que não se viveu.

Apesar da Fé.


A cidade onde moro teve um histórico de infortúnios ambientais, causados por enchentes, que a engenharia civil e o poder público terminariam por resolver. 

A construção de três barragens e o alargamento da calha do rio, poriam um ponto final nas cheias da grande Recife.

Acabaria a ansiedade, o sofrimento, a dor e a tristeza dos que tinham na periodicidade das cheias uma certeza, pois a dúvida era apenas com relação à sua grandeza.

As obras que por fim resolveriam o problema, estabeleceriam o marco entre duas eras: a.c e d.c., para significar antes e depois das cheias.

Em 1966, ainda sem a proteção das barragens, as rádios alertavam a população ribeirinha de que águas caudalosas do rio Capibaribe estavam por vir, sedentas por espaços.

Diante da ameaça, a reação. Estávamos em casa, mas não do jeito habitual. Meu pai sentara nos batentes pelos quais subíamos ao terraço, vindos do jardim. Eram apenas três degraus.

Enfiara na grama um galho que arrancara do jambeiro. Ele o ajudaria a acompanhar o nível das águas, se viessem a ameaçar a nossa casa. As águas estavam porém, ainda distantes! 

Na sala havia uma mesa, e nela eu parecia não acreditar no provável. Ali eu estudava, e lembro até que o assunto era a geometria descritiva.

A minha mãe, apreensiva, parecia não encontrar um lugar, onde pudesse nele ficar. Entrava e saía, e impossível seria para ela disfarçar tamanha apreensão.

Um certo tempo decorreu até que o aumento do nível das águas as fizesse entrar no jardim. Agora já molhavam o galho seco do jambeiro, à frente do primeiro dos batentes.

Meu pai então anunciou: a água chegou. Ela já começa a inundar o jardim.

Minha mãe isso logo comprovou, mas foi firme, taxativa, diria até que peremptória. Ela disse: mas tenho fé em Deus que em casa ela não vai entrar.

Enquanto isso, meus estudos da geometria descritiva, da qual gostava tanto, prosseguiam.

Não havia nenhum tique-taque de relógio para tornar insuportável toda aquela dramaticidade. Insuportável porém, era para o meu pai, ver que tão inexorável quanto o tempo, era o aumento do nível das águas.

Não demorou muito para que ele de lá dissesse algo outra vez: a água passou do primeiro degrau.

Minha mãe de cá respondeu: mas tenho fé em Deus que em casa ela não vai entrar.

Como não vai entrar? Arriscava, desafiante, o meu pai.

E quanto a mim, hoje é que percebo o tanto que gostava de geometria descritiva!

Enquanto continuava a acompanhar a progressão da cheia, meu pai dessa vez avisou: antes da água chegar ao terceiro degrau, melhor será começar a subir os móveis.

O clima emocional se intensificava, e minha mãe outra vez reafirmava suas convicções: tenho fé em Deus que ela em casa não vai entrar.

A seguir, talvez com a água já se aproximando do último degrau, meu pai me interromperia com uma declaração que não foi dirigida só a mim, mas a quem arredor pudesse também ouvir: esse menino parece um demente! Foi o que ele terminaria por falar, com imensa convicção.

Guardei os livros e fui viver a cheia.

Depois de tudo, difícil foi admitir que somente eu e o meu pai tivéssemos sido capazes de levantar do chão os móveis, deixando-os tão suspensos quanto ficaram.

Fizemos tanto quanto pudemos, e ao final tínhamos água pelos joelhos. Por precaução havíamos desligado a energia elétrica, e enxergávamos à luz de velas.

Minha mãe, e as demais pessoas da nossa família, já estavam em casa de uma das irmãs dela, a tia Letícia, que morava na mesma rua. O nível da casa dela era mais alto que o da nossa, o suficiente para que lá a água chegasse apenas até o portão.

Saímos meu pai e eu de nossa casa quando, no jardim, a água já se elevava acima das nossas cinturas. E o nível continuaria a subir, alcançando um metro e vinte centímetros no interior da nossa casa.

Tínhamos entre os nossos vizinhos, a figura simpática e por nós muito querida, do Sr Pessoa. Uma família adorável!

Moravam em uma casa de dois pavimentos, e foi no pavimento superior que resolveram se abrigar. Fumante de longa data, faltou-lhe fogo para acender um cigarro. Contava depois o Sr Pessoa, que jamais poderia ter imaginado uma cena daquelas!

Foi que da sua casa, ele acenou para um barco que por ali passava, e o barco ancorou na janela do seu primeiro andar, para que dele alguém lhe acendesse o cigarro.

As águas ainda estavam a baixar, quando voltamos à casa, para encarar com tristeza tantos estragos. Livros boiavam por causa de uma estante que virou, e ainda que suspensos, os móveis foram parcialmente alcançados pela água. Havia muita lama e mal cheiro insuportável. 

Os prejuízos materiais contudo, costumam ser irrelevantes diante de eventuais danos pessoais. Meu pai teve tifo, e aparentemente seria o único que em consequência da cheia viria a adoecer.

O pior contudo ainda estava por acontecer. Embora a causa de certas doenças, algumas delas fatais, permaneça desconhecida, a medicina atribui às condições severas de estresse, riscos indesejáveis à saúde.

Passamos por isso a associar o que aconteceria à minha mãe, àquela cheia inesperadamente tão grande e fatídica.

Foi um grande choque para todos nós quando, meses depois, naquele mesmo ano, ouvimos do Dr Rildo Saraiva, hematologista, o diagnóstico para a doença que acometera minha mãe: leucemia. E a ela nos foi dito restarem apenas três meses de vida. O que de fato se confirmou.

Anos depois, em uma madeira da parte inferior de um dos sofás, eu descobriria escrito com a letra do meu pai: 1966 - Ano da Cheia Maldita.

O Sexto Sentido.

Uma Volta ao Mundo, Dançando!