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domingo, 5 de abril de 2015

Até Nada Mais Restar.



Duas estradas ligavam aquelas duas cidades. O Crato e o Juazeiro do Norte. A estrada velha e a estrada nova. 

Um dia, avistei do avião que sobrevoava a região, que em lugar da estrada nova, havia uma novíssima. E depois constataria "in loco" que a estrada velha quase havia desaparecido! 

Lado a lado, hoje há uma larga via duplicada, e paralela a ela, a estrada que se tornou velhíssima. Agora, ela é uma via secundária de areia, interditada em alguns trechos por pontes caídas ou pela invasão do mato.

Foi em um ponto intermediário entre as duas cidades, ao longo da estrada velha, que estabeleceram-se os meus bisavós maternos, Francisco e Isabel, e ali desenvolveram atividades agrícolas.

Toda aquela área desde então é conhecida por São José, e da casa em que moraram meus bisavós, restaram apenas ruínas. 

Preservada porém está a casa grande do engenho do tio-avô Tonho, que em tempos de moagem enchia a noite de ruídos, com o rangido contínuo e muito alto dos carros de bois.

Dentro da casa, sinto ainda o mesmo cheiro de quando eu era criança. A sua capela, lamentei que perdeu a originalidade quando passou, infelizmente, por uma triste reforma.

Nas paredes, emoldurados, retratos antigos da família. Mas muito mais que nas paredes, há retratos guardados dentro de um antigo baú. Dele vi sair a carta de autorização do bispo da capital, para que missas pudessem ser celebradas na capela da casa do tio Tonho.

Os sítios vizinhos pertenciam todos a descendentes dos meus bisavós. Eu muito perambulei entre eles, com grande alegria, porque por mais que eu andasse para lá ou para cá, continuava me sentindo em casa.

Além do sitio de tio Tonho, do qual o engenho era o seu simbolo natural, havia para ocupar até hoje grande espaço na minha memória, várias outros sítios com as suas casas. Algumas rivalizavam em tamanho, localização e peculiaridades das suas capelas. 

Havia um desses sítios, que para mim tinha destaque especial. Caminhávamos, caminhávamos, caminhávamos agora só mais um pouco, e de onde sempre vínhamos, avistávamos à nossa esquerda, recuada e meio escondida pelo verde das árvores, a casinha simples porém espaçosa e limpa, da tia Alica.

Tão limpa e bem cuidada, como sempre imaginei que fossem as casinhas em meio de florestas, dos meus contos infantis.

Tia Alica era viúva, e morava com o seu filho Assis, que por ter preferido a "eterna solteirice", por lá dizia-se ser um "rapaz velho".

À frente e à esquerda da casa, mas dela independente, estava a oficina dele. Era um desafio ali conseguir entrar, principalmente se dentro ele já estivesse. 

É que espalhados por todo o seu espaço, estavam sobretudo os componentes eletrônicos dos rádios que Assis consertava. Mas, além disso, havia muitas outras tralhas, como peças de bicicletas e todo tipo de sucatas difíceis de identificar.

A tia Alica era considerada bastante idosa para a época, mas despertava admiração pela sua vitalidade. Em dias de feira no Crato costumava, saindo de sua casa no São José, ir e voltar a pé.

Meus pais pareciam gostar muito daquele lugar, que atraía também o interesse das crianças. 

Assis fizera um balanço a partir de um pneu de automóvel, e o fixara com cordas ao galho mais forte de uma imensa árvore à frente da casa.

Meu pai, sossegado em uma rede armada no terraço, costumava dali a tudo assistir em paz, exceto quando um dia me viu passar em cima de um burro, que aparentemente desembestara. 

Na realidade foi para ele um grande susto, porque despertou com o alarde que fizeram as pessoas arredor, ansiosas que nos dirigíssemos, o burro e eu, para a linha do trem que passava à frente da casa.

Um morador atento e habilidoso antecipou-se detendo a nossa escalada. Em breve tudo voltaria à normalidade, convidada pela tranquilidade daquele lugar, apesar de toda a meninada. 

Meu tempo na casa de tio Tonho era bom de um modo diferente, e muito especial. Em tempos de moagem, podíamos todos matar a nossa curiosidade e exercitar a atenção, quando no engenho, em torno da gamela, assistíamos o mexer do melaço fervente.

Todas as etapas, até finalmente ficarem prontas as rapaduras e as batidas, eram simplesmente maravilhosas! 

O clímax era bem antes do final, quando já era possível usar o melaço para, aproveitando a liga consistente que adquirira, fazer o puxa-puxa que assumiria diferentes formas, as quais dependiam da arte de quem fazia o chamado alfinim.

Sempre preferi comê-lo antes de pronto, isto é, antes que se solidificasse. Jamais isso seria possível fora do instante da sua produção. Mais um motivo para que eu achasse aquele engenho o lugar dos sonhos, pois só ali algumas coisas eram possíveis.

Havia um momento das atividades em que os empregados do engenho traziam burros e jumentos, para por em cima das suas cangalhas o bagaço resultante das moagens.

Saíam depois de carregados, todos de uma vez, pelas trilhas em meio ao campo, até o local onde seriam despejados para ali virar fertilizante. 

Faziam o cortejo, os empregados do engenho e os burros à frente, e a meninada, em momento de grande euforia que os seguiam a pé, tentando acompanhar, pois as nossas pernas ainda eram muito curtas! 

A grande motivação era que os animais voltavam desocupados do bagaço de cana que lá deixavam. Nós o substituíamos montando-os no caminho de volta.

Seria no São José, que à parte dos momentos de brincadeiras, lembro do que teria sido a primeira gafe da qual participei.

Tio tonho, que ficou viúvo duas vezes, casou três. A sua cunhada Mariinha, do primeiro casamento, terminaria criando uma das suas filhas, a sobrinha Maristela. Ao morrer Mariinha, deixando viúvo o seu marido José Leite, veio ele a casar, apesar da grande diferença de idade, com a sua sobrinha e filha adotiva. 

O casamento, realizado no São José, encheu de convidados o sítio do tio Tonho. De novo lá estava eu, que na companhia de um primo da mesma idade, Luiz Carlos, e de Júnior, filho do primeiro casamento do noivo, nos dirigíamos a capela. 

Foi quando Luiz Carlos, não sabendo que o garoto que nos acompanhava era filho do noivo, perguntou: quem é mesmo o velho que vai casar hoje? 

Apressei-me em consertar as coisas, o que me parece vem de longa data, dizendo: ora Luis Carlos, ele não é tão velho assim!

Foi quando, assertivo, Luiz Carlos de lá emendou: É sim! Tia Alice me falou.

O intrincado de casamentos entre parentes, à moda das famílias reais, que eu saiba  não resultou, entre os Melos, nos problemas decorrentes da consanguinidade.

O mesmo eu não poderia dizer com relação a facilidade de compreender os laços decorrentes de algumas uniões.

A propósito, conta-se que tio Tonho, ao enviuvar pela segunda vez, decidira não voltar a casar. Certo dia, estando sentado à frente da sua casa, apareceu-lhe o seu melhor amigo, que dirigindo-se a ele, explicou que viera lhe pedir um favor.

Solícito, meu tio foi logo respondendo: diga lá o que é, porque você sabe, amigo é para essas coisas, e seja lá o que for quero mais é lhe atender.

E o amigo foi direto ao ponto: vim lhe pedir para você casar com a minha filha Dalia.

A precipitação do tio Tonho, e o rigor dos antigos em cumprir a palavra dada, costume que depois cairia em desuso, levou mais um ancião a casar com um brotinho.

Como Dalia tinha uma irmã, Dodó, quis o destino que ela viesse a se engraçar por Antônio de Melo Filho (Toinho), filho do tio Tonho!

Cuidado então para não se perder nas minhas palavras, pois duas irmãs casaram uma com o pai, a outra com o filho.

Assim, o filho tornou-se concunhado do próprio pai, e os filhos que com Dodó ele teve, passaram a ser sobrinhos do próprio avô. Quanto à madrasta do Toinho, era também a sua cunhada e quanto à sua mulher, tornou-se cunhada do próprio sogro!

A madrinha de  todos nós, Dodó, recentemente faleceu às vésperas de completar 100 anos. Com ela, foram-se todos os velhos antigos. Um pouco mais, e com sorte já teremos os novos velhos. 

As terras herdadas pelos netos do meu tio avô, mudaram as dimensões dos sítios que aumentaram em quantidade, porque diminuíram em tamanho. Viraram chácaras ou até grandes terrenos, e em lugar das cercas de arame ou cercas vivas, hoje há muros altos. 

Nas janelas da casa grande, ainda estão impressos, os buracos de bala da Revolta ou Sedição do Juazeiro, ocorrida em 1914. Naquela ocasião as tropas do Padre Cícero, então intendente do Juazeiro (prefeito), o qual depois se tornaria vice-governador do estado, terminaria por depor Marcos Franco Rabelo, comandante das tropas que a ele se opunham. 

Os sinais do passado porém, até mesmo as efêmeras marcas de tiros desses combatentes, não tardarão a desaparecer. 

Quase nada mais resta da atmosfera daquele tempo, que só continua a existir na lembrança de quem ali foi feliz.

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