O militarismo parecia ter alcançado a plenitude! Vivíamos, no Brasil, a década de 60 dos chamados anos de chumbo.
A prevalência de um militar sobre um civil impunha-se, sem importar qual a sua patente.
Os quartéis foram, então, os precursores das nossas atuais lombadas eletrônicas. Passar à frente deles, teria de ser a velocidades extremamente reduzidas. Aquilo até me reportava ao dever católico de uma genuflexão ao cruzar o altar.
E foi na esquina da rua em que então morava, que saídos de um quartel para um "tour" pelo bairro, vi dois soldados com fuzis às mãos, conduzirem um preso político para sua humilhação.
O homem tinha os cabelos grisalhos, que só não eram mais, porque era calvo. O rosto era sofrido, mas altivo. Transmitia uma extraordinária força interior. Vestia apenas um calção preto que ia até os joelhos, e no pescoço haviam amarrado um lenço vermelho. Estava descalço e tinha ferimentos nas pernas e nos braços.
Viria depois a saber que se tratava de Gregório Bezerra. O responsável por sua prisão, que seguira-se ao golpe militar de 1964, fora um vereador do Recife, Wandecock Wanderley.
Por isso, vinte anos depois, fui tomado de muita curiosidade e interesse, quando a minha irmã Joselice falou-me que os iria entrevistar.
Joselice era então a diretora do Centro de História Brasileira - CEHIBRA, da Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, e há pouco voltara de um doutorado na Inglaterra.
Visitou-os em suas residências, e sobre o que me contou, me aterei às evidencias externas de duas almas vivendo o ocaso de suas vidas.
O ex-prisoneiro era uma alma doce. O seu delator, um atormentado.
O primeiro a olhava nos olhos, e discorria sobre suas memórias sem nenhum traço de mágoa ou rancor. Inspirava profunda paz interior, transmitia delicadeza nos seus gestos.
O outro, desconfiava, defendia-se sem que de nada estivesse sendo acusado, aparentava sinais de debilidade nas mãos, e seus gestos ofereciam leituras pouco lisonjeiras.
Voltarei, contudo, o meu foco para a questão do valor e da importância que as forças armadas, ao governar à força, conferiram aos militares em geral, que apoiavam o regime.
Clodoaldo e Bioni eram dois amigos, ambos odontólogos, que por muitos anos dividiram um consultório no centro da Recife, à Av Guararapes.
Clodoaldo era cunhado de um dos meus tios, Plácido, irmão da minha mãe, de quem eu muito gostava.
Foi ele, desde quando eu ainda era menino até os tempos de faculdade, um meu grande apoiador, de quem não só guardo boas lembranças, como um sincero sentimento de gratidão.
Minha única ressalva a ele, e certo dia já o fiz saber, é que me influenciou na escolha do time de futebol, pelo qual até hoje torço, e que, convenhamos, nos orgulha menos do que gostaríamos.
Certo dia, entramos Clodoaldo, Bioni e eu em uma antiga drogaria, a Dropersa, à rua da Aurora, e a encontramos lotada. Pessoas acotovelavam-se ao longo de todo o extenso balcão.
A compra de um único remédio, haveria de desafiar a paciência de todos, à espera de atendentes agoniados pela impaciência dos que há mais tempo esperavam.
Foi quando Bioni, pondo o braço no ombro de Clodoaldo, bradou alto e autoritário para um dos atendentes: atenda aqui ao Cabo!
Sim! Ele poderia ter escolhido para o amigo dentista, uma patente maior. Teria porém sido desnecessário! Fomos atendidos imediatamente.
Por isso a ninguém causará surpresa reações mais do que solícitas, por reverência civil a patentes militares mais elevadas.
Em outro dia, daqueles dias de exceção, voltávamos meu pai e eu da vizinha cidade de João Pessoa. Embora habilitado a dirigir, meu pai parecia reconhecer que estaríamos mais seguros comigo ao volante. Além do que seria uma questão de poucos dias, e eu também estaria habilitado.
Foi quando a súbita visão de uma "blitz", não me deu alternativa senão obedecer a ordem do guarda de trânsito que me mandava parar no acostamento.
Eram fiscalizados os veículos que trafegavam em ambos os sentidos, e eram muitos os carros que havia estacionados nos acostamentos de ambos os lados.
Três guardas, e um deles me pareceu de maior destaque na operação, dirigiram-se a nós, e dizendo para desligar o jeep, pediram os documentos do veículo e a minha habilitação.
Coube ao meu pai, que a essa altura já descera e estava de pé ao lado deles, explicar-lhes o quanto eu, apesar de exímio condutor, ainda não podia mostrar-lhes a habilitação, pois não a tinha.
A minha identidade civil foi então apreendida e os guardas apressaram-se no estrito cumprimento dos seus deveres. Seguir-se-ia aplicação de multa e apreensão do veículo.
Foi quando meu pai avistou, estacionado no outro lado da estrada, pois trafegava em sentido contrário ao nosso, ninguém menos que aquele por quem dali mesmo gritou: General Expedito!
De pronto ele ouviu e já atravessava em nossa direção, e como se ali não houvesse mais ninguém, reservou toda a sua atenção para o meu pai. O que está acontecendo, Jucá? Foi logo perguntando.
Coube ao guarda, que tinha às mãos a minha identidade, responder: não foi nada, General! Aqui estou devolvendo os documentos do garoto, com a recomendação de que o seu pai assuma a direção. Ele já me prometeu, que na próxima semana irá ao Detran para regularizar a sua situação.
Antes de prosseguirmos, saudações respeitosas dos guardas para o General Expedito, e até para mim, e breve troca de palavras entre os velhos amigos sobre o grande prazer de reencontrarem-se.
Outra vez viajando, e aliviados, comentei surpreso com o meu pai: jamais pensei que o seu Expedito fosse General!
Ao que o meu pai respondeu: Expedito? Expedito nunca sequer serviu ao exército, e tem horror a "milicos".
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