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sexta-feira, 10 de abril de 2015

Apesar da Fé.


A cidade onde moro teve um histórico de infortúnios ambientais, causados por enchentes, que a engenharia civil e o poder público terminariam por resolver. 

A construção de três barragens e o alargamento da calha do rio, poriam um ponto final nas cheias da grande Recife.

Acabaria a ansiedade, o sofrimento, a dor e a tristeza dos que tinham na periodicidade das cheias uma certeza, pois a dúvida era apenas com relação à sua grandeza.

As obras que por fim resolveriam o problema, estabeleceriam o marco entre duas eras: a.c e d.c., para significar antes e depois das cheias.

Em 1966, ainda sem a proteção das barragens, as rádios alertavam a população ribeirinha de que águas caudalosas do rio Capibaribe estavam por vir, sedentas por espaços.

Diante da ameaça, a reação. Estávamos em casa, mas não do jeito habitual. Meu pai sentara nos batentes pelos quais subíamos ao terraço, vindos do jardim. Eram apenas três degraus.

Enfiara na grama um galho que arrancara do jambeiro. Ele o ajudaria a acompanhar o nível das águas, se viessem a ameaçar a nossa casa. As águas estavam porém, ainda distantes! 

Na sala havia uma mesa, e nela eu parecia não acreditar no provável. Ali eu estudava, e lembro até que o assunto era a geometria descritiva.

A minha mãe, apreensiva, parecia não encontrar um lugar, onde pudesse nele ficar. Entrava e saía, e impossível seria para ela disfarçar tamanha apreensão.

Um certo tempo decorreu até que o aumento do nível das águas as fizesse entrar no jardim. Agora já molhavam o galho seco do jambeiro, à frente do primeiro dos batentes.

Meu pai então anunciou: a água chegou. Ela já começa a inundar o jardim.

Minha mãe isso logo comprovou, mas foi firme, taxativa, diria até que peremptória. Ela disse: mas tenho fé em Deus que em casa ela não vai entrar.

Enquanto isso, meus estudos da geometria descritiva, da qual gostava tanto, prosseguiam.

Não havia nenhum tique-taque de relógio para tornar insuportável toda aquela dramaticidade. Insuportável porém, era para o meu pai, ver que tão inexorável quanto o tempo, era o aumento do nível das águas.

Não demorou muito para que ele de lá dissesse algo outra vez: a água passou do primeiro degrau.

Minha mãe de cá respondeu: mas tenho fé em Deus que em casa ela não vai entrar.

Como não vai entrar? Arriscava, desafiante, o meu pai.

E quanto a mim, hoje é que percebo o tanto que gostava de geometria descritiva!

Enquanto continuava a acompanhar a progressão da cheia, meu pai dessa vez avisou: antes da água chegar ao terceiro degrau, melhor será começar a subir os móveis.

O clima emocional se intensificava, e minha mãe outra vez reafirmava suas convicções: tenho fé em Deus que ela em casa não vai entrar.

A seguir, talvez com a água já se aproximando do último degrau, meu pai me interromperia com uma declaração que não foi dirigida só a mim, mas a quem arredor pudesse também ouvir: esse menino parece um demente! Foi o que ele terminaria por falar, com imensa convicção.

Guardei os livros e fui viver a cheia.

Depois de tudo, difícil foi admitir que somente eu e o meu pai tivéssemos sido capazes de levantar do chão os móveis, deixando-os tão suspensos quanto ficaram.

Fizemos tanto quanto pudemos, e ao final tínhamos água pelos joelhos. Por precaução havíamos desligado a energia elétrica, e enxergávamos à luz de velas.

Minha mãe, e as demais pessoas da nossa família, já estavam em casa de uma das irmãs dela, a tia Letícia, que morava na mesma rua. O nível da casa dela era mais alto que o da nossa, o suficiente para que lá a água chegasse apenas até o portão.

Saímos meu pai e eu de nossa casa quando, no jardim, a água já se elevava acima das nossas cinturas. E o nível continuaria a subir, alcançando um metro e vinte centímetros no interior da nossa casa.

Tínhamos entre os nossos vizinhos, a figura simpática e por nós muito querida, do Sr Pessoa. Uma família adorável!

Moravam em uma casa de dois pavimentos, e foi no pavimento superior que resolveram se abrigar. Fumante de longa data, faltou-lhe fogo para acender um cigarro. Contava depois o Sr Pessoa, que jamais poderia ter imaginado uma cena daquelas!

Foi que da sua casa, ele acenou para um barco que por ali passava, e o barco ancorou na janela do seu primeiro andar, para que dele alguém lhe acendesse o cigarro.

As águas ainda estavam a baixar, quando voltamos à casa, para encarar com tristeza tantos estragos. Livros boiavam por causa de uma estante que virou, e ainda que suspensos, os móveis foram parcialmente alcançados pela água. Havia muita lama e mal cheiro insuportável. 

Os prejuízos materiais contudo, costumam ser irrelevantes diante de eventuais danos pessoais. Meu pai teve tifo, e aparentemente seria o único que em consequência da cheia viria a adoecer.

O pior contudo ainda estava por acontecer. Embora a causa de certas doenças, algumas delas fatais, permaneça desconhecida, a medicina atribui às condições severas de estresse, riscos indesejáveis à saúde.

Passamos por isso a associar o que aconteceria à minha mãe, àquela cheia inesperadamente tão grande e fatídica.

Foi um grande choque para todos nós quando, meses depois, naquele mesmo ano, ouvimos do Dr Rildo Saraiva, hematologista, o diagnóstico para a doença que acometera minha mãe: leucemia. E a ela nos foi dito restarem apenas três meses de vida. O que de fato se confirmou.

Anos depois, em uma madeira da parte inferior de um dos sofás, eu descobriria escrito com a letra do meu pai: 1966 - Ano da Cheia Maldita.

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