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domingo, 19 de abril de 2015

Crescer e Acreditar - Ato I (1/4).


No início da década de sessenta, os colégios particulares mistos ainda estavam fora do horizonte. Meninos eram educados por homens, e meninas por mulheres. Em geral religiosos, e principalmente católicos romanos.

Em Recife, onde passei a morar a partir de março de 1959, os principais colégios, por ordem alfabética, eram: colégios femininos havia o Damas, São José e Vera Cruz. Entre os masculinos, Marista, Nóbrega e Salesiano.

A tradição jesuítica de competência educacional, levava a que, entre os colégios masculinos, a classe rica ocupasse uma quantidade considerável de vagas no Colégio Nóbrega.

Isso tornaria a mudança que vivi, ao sair de uma pequena cidade provinciana para uma grande capital, ainda mais contrastante.

Ao estudar no Nóbrega, a partir do segundo ano ginasial, contribuí para que o seu quadro de alunos pudesse ser considerado representativo da sociedade como um todo, pela presença nele de estudantes de diferentes classes sociais.

Os colegas ricos eram em maioria originários de famílias de grandes usineiros ou políticos do estado, ou de políticos usineiros.

Um dia, alguns deles fizeram tão grande insubordinação, que chegou a envolver a profanação da igreja do colégio, atualmente considerada santuário de peregrinação pelo Vaticano.

Só muito tempo depois eu pude entender porque um caso passível de expulsão sumária resultou apenas em punições relativamente brandas.

Eles eram ricos, políticos e poderosos.

O aspecto disciplinar, contudo, era levado muito a sério pelos padres! Certo dia, após o recreio, por não ter atendido prontamente à chamada para o retorno à sala de aula, fui punido. 

O castigo foi ser obrigado a comparecer ao colégio fora do expediente das aulas, e permanecer por algumas horas em uma sala, junto a outros colegas que ali estavam por infrações diversas.

A excelência do laboratório de ciências do Nóbrega me fazia lembrar o Colégio Diocesano do Crato, onde o laboratório de ciências também era valorizado. Em ambos havia um esqueleto completo, e a orientação da disciplina era voltada sobretudo para a área das Ciências Médicas.

Por uns tempos até pensei que terminaria estudando medicina, pois até já começara a decorar os ossos todos do corpo humano, a partir das mãos.

Foi certamente por isso que décadas depois, ao sofrer um acidente de moto que resultou em fratura, não fiquei surpreso quando o médico anunciou: fratura exposta, no terço médio do rádio. 

Não viria a ser médico, por dois motivos principais: o primeiro, teria sido o padre Borges, meu professor de Ciências, que involuntariamente, por não ter a melhor didática, me motivou a tomar outra direção. O segundo, foi que eu continuava a desmaiar ao ver sangue, o  que seria péssimo se viesse a acontecer na presença de um paciente.

A propósito, o padre Borges era alto, calvo no topo da cabeça e usava sempre uma batina preta, em contraste com a maioria dos padres jesuítas, seus colegas de ordem, que preferiam as de cor bege.

Os birôs dos professores em sala de aulas ficavam sobre estrados para que, sentados, tivessem uma boa visão geral dos alunos, e estes também do professor.

O padre Borges costumava, ao sentar, inclinar a cadeira, que ficava apoiada apenas nas pernas de trás. Encostava então a cabeça na parede, e nessa posição, que sempre me pareceu privilegiada, aguardava que toda sala estivesse em completo silêncio, para finalmente fazer a chamada e dar início à aula.

Certo dia, antes do início da aula, alguém teve a ideia de desenhar na parede por trás do birô, onde era esperado que como sempre ele encostasse a cabeça, um par de belos chifres.

Não me lembro de que, até então, o início de uma aula tivesse despertado tanta excitação em nossa turma. A ansiedade era geral, e portanto ninguém pagaria injustamente o castigo que viria depois.

Deu tudo muito certo! Isto é, errado mesmo, só deu para o aborrecível padre Borges, que por qualquer coisa se irritava. Imagine havendo uma justíssima razão!

Ao colar a cabeça no lugar habitual da parede, por ela já esperava aquele desenho bovino, ou satânico, que lhe compôs a figura, e disparou as gargalhadas simultâneas de toda meninada. Ainda mais hilariante foi a vítima demorar a perceber o ridículo por que passava.

O padre Borges era pálido, mas de súbito fez-se rubro e encolerizado. Não houve aula nesse dia, a princípio, pela espera de que o autor se apresentasse, o que não aconteceu. Em seguida, porque toda a turma terminaria punida, com a aplicação de uma prova surpresa de ciências, em lugar da aula.

A comunicação oficial da indisciplina pelo padre Borges à sub-diretoria do colégio, à época a cargo do simpático padre Santana, incluiria os seguintes termos: ... portanto, peço a punição desta turma, por ter desenhado chifres à "crayon", na parede da sala de aula.

Alguns padres tropeçavam nas dificuldades do ofício, mas a maioria, não!

Continua no Ato II (2/4).

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