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segunda-feira, 30 de março de 2015

No Sopé do Araripe.


Uma vasta área rural com predominância do verde e árvores frutíferas. Um toque feminino presente nos gerânios e nas floridas trepadeiras. Ao lado, e com fácil acesso para os que vêm da rua, uma capela. Ao centro do pomar, a casinha branca irretocável. No terraço, aconchegantes cadeiras, e caqueiras com vistosas samambaias.

Localizada no Crato, na ladeira que só termina quando chega ao Clube Granjeiro, subida da serra do Araripe, aquele belo recanto beneficiado pela sua localização e altitude, viria a ser o lugar de repouso de um homem forte, vigoroso, trabalhador, enérgico, bonito e padre.

Começara cedo, não sei se por vocação, imposição ou falta de opção. Eu ainda me iniciava no curso primário daquele imenso colégio, e lá ele já era o diretor.

Apesar de ainda muito moço, era admirado por todos e festejado principalmente pelas mulheres.

Inteligente, culto e atuante, por alguns anos acumulou suas funções de padre e educador, com a de integrante do Conselho de Educação do Ceará.

Desempenhou do Crato as suas funções, com grande esmero. Orgulhava-se de, ao longo de quatro anos, nunca haver faltado a uma só das reuniões do Conselho, ainda que precisando, mensalmente, enfrentar longas viagens de ônibus para a capital.

Não sei quando fiquei sabendo, que o então padre Francisco de Holanda Montenegro, que viria a tornar-se monsenhor, era primo do meu pai e, portanto, meu primo também.

Por isso é que mesmo depois de mudar-se para o Recife, meu pai costumava visitá-lo sempre que ia ao Crato, e por último já na chácara do chamado Bairro do Granjeiro.

O parentesco era pela família Holanda da mãe do meu pai. Os Jucás e Holandas eram originários da cidade cearense de Iguatu e região circunvizinha, denominada Inhamuns.

Após o falecimento de meu pai, em 1986, nas minhas idas periódicas ao Crato passei a visitar o velho parente, cuja primeira lembrança que dele tinha, era a de nos chamar a todos, alunos primários do Diocesano, por "Zezinho".

Em minhas primeiras visitas ao Monsenhor Montenegro, encontrei-o já aos 80 anos. No início, talvez por uma não aceitação inconsciente da perda do meu pai, às vezes me tomava por ele, ao perguntar a mim, por mim mesmo! 

Eu gostava muito de ouvi-lo sobre as suas experiências de vida, e mesmo quando, cada vez mais se aproximava dos seus 90 anos, sempre o encontrava lendo e escrevendo um novo livro. 

Costumava presentear-me com os livros de sua autoria fazendo dedicatórias, e quando de algum não era possível de imediato dispor, porque ainda estava no prelo, encarregava-se de me mandar depois pelo correio.

Quando no Crato eu visitava outras figuras ilustres que guardara nas minhas lembranças de infância, aproveitava para cruzar informações, e descobrir a imagem que uns tinham dos outros.

Assim é que visitei a minha primeira professora de português, Dona Rosinha Esmeraldo, às vésperas do seu centenário. Era ela irmã de Dona Lurdinha Esmeraldo, a quem já me referi em outra história, e portanto também prima de minha mãe Alice.

Dona Rosinha conversou comigo longamente, com admirável lucidez. Perguntei sobre as suas lembranças e ligações com muitos de seus contemporâneos, inclusive sobre o agora Monsenhor Montenegro.

Ela me reafirmou, então: o Monsenhor Montenegro é primo do seu pai! Chegou aqui muito moço, bonito! Por mais de cinco décadas, e até um dia se aposentar, foi o diretor do Ginásio Diocesano. Agora está velho!  Mas as moças eram doidas por ele!

E continuava Dona Rosinha: lembro aqui na Igreja da Sé, que em dia de confissão formava-se uma fila imensa... Aquelas moças todas na fila, escolhiam ele para se confessar. 

Eu mesma e minha irmã Lurdinha, às vezes uma às vezes a outra, a gente tinha pena dele, confessando horas sem parar! Nós levávamos um copo de leite para ele, e ficávamos um tempão em pé, com o copo de leite esfriando, até ele notar. 

Quando ele via, no intervalo entre uma confissão e outra, fazia um sinal para a gente se aproximar, e era aí que tomava aquele copo de leite, antes de continuar.

Voltando ao histórico das minhas visitas, nas últimas que fiz, ele me esperava na calçada e manifestava sempre uma grande satisfação de me rever. 

Conversava sobre a origem das famílias que haviam constituído a região do Cariri, sobre a guerra de Canudos, sobre fatos das décadas em que viveu o famoso padre Cícero, e discorria também sobre suas lembranças de infância no Iguatu, nas quais se incluíam o meu pai e a minha tia-avó que o criou. A tia-avó Ermezinda, avó do meu primo Pedro Rocha Jucá, que terminaria por deixando o Crato, "sentar praça" em Cuiabá.

Na última visita que fiz a Monsenhor Montenegro, já fazia aproximadamente um ano e meio que havia completado 90 anos. Fizeram uma grande e merecida festa para ele. Ele notou a minha ausência ao comentar: faltou você!

Contou-me que, uns dois anos antes, andara doente, e que por pouco não conseguiu completar os seus 90 anos.

Naquele dia despedi-me dele com o sentimento de que não mais o veria, o que de fato veio a acontecer. Sob vários aspectos, tirei muitas lições enriquecedoras daquelas raras ocasiões em que estive com ele.

Monsenhor Montenegro teve a sorte de encontrar ao longo dos seus muitos anos de vida, uma piedosa senhora que dele sempre cuidou diligentemente. 

Agora ela se tornara mais próxima, para atender às exigências desta avançada fase da velhice, passando a morar na chácara.

O Monsenhor Montenegro faleceu no dia 12 de abril de 2005, aos 92 anos, e foi sepultado na capela da própria chácara, onde até o final da vida costumava celebrar missas aos domingos.

A chácara ele doou para que a Diocese ali pudesse abrigar os padres idosos e aposentados como ele. 

Ao deixá-lo após a minha última visita, o abracei, e entrei no táxi que ele mandara chamar para mim. 

Ainda não havíamos cruzado o portão da chácara, e o taxista já puxava conversa comigo, começando por dizer:

- Coitado do Monsenhor!!! Mora aí nesse lugar tão isolado, SÓZINNN !!!!!!!!

sábado, 28 de março de 2015

Onde Encontrar Socorro?


Estive "fora de órbita" por uns dias, após aqueles últimos meses emocionalmente tão intensos, e sobretudo pela forma como terminaram.

Entretanto, o amanhecer seguinte à minha demissão da Eletromar teria que obedecer a rotina habitual. 

O meu estado profissional mudara bruscamente para desempregado, e para que ninguém em minha casa soubesse, em especial o meu pai, era preciso fingir.

Acordar no mesmo horário de sempre e sair como se fosse trabalhar, me provocava uma sensação estranha. 

Duas importantes provas na faculdade se avizinhavam. Pensei: pelo menos para essas terei mais tempo de estudar!

Quem sabe é a isso que se diz: "quando Deus fecha uma porta, abre uma janela?"

Em todo caso conseguiria eu, diante da visão assustadora do curto prazo, fazer o uso desejado daquele tempo que me fora doado?

Os dias passavam e a minha cabeça... Bom! A minha cabeça continuava a mil! Como retomar as rédeas?

Foi quando a partir de algumas constatações pessoais que me eram notórias, concluí: não tenho neste momento nenhuma condição psicológica para ir em busca de outro emprego. Quem sabe, daqui a mais alguns dias!

Proibi-me então de pensar nisso, por enquanto, e evoluí em outras linhas de atitude para melhor enfrentar aquele momento. Sem saber, descobriria depois que agira estoicamente.

Foi assim que comecei a passar o dia na faculdade, onde além de me distrair pela presença dos colegas, focava no estudo para as provas que se aproximavam.

Foi quando algo de muito extraordinário aconteceu!

Ouvi uma voz muito clara e estridente que me pareceu vir do alto. Ainda que finalmente tão concentrado no meu livro, impossível seria não ouvi-la, e com total clareza. Meus tímpanos até hoje guardaram as marcas daquela mensagem.

Era Socorro, irmã de Camilo. Meus colegas distantes de curso. Estudavam engenharia civil. Ela jamais viria a saber o papel que desempenhou no roteiro do filme da minha vida, naquela fase de gênero suspense/terror.

Desenvolvi daí a minha profunda aceitação que as mulheres falem muito, e que falem alto.

Socorro falava para alguém: Já fostes lá na SOCID?

Diante da reação de incompreensão àquela pergunta, Socorro acrescentou: estão precisando de dois estagiários de engenharia. Se houver interesse, vá logo! As entrevistas encerram amanhã.

Nada perguntei a ninguém. Minutos depois de uma consulta às páginas amarelas de um gasto catálogo telefônico, eu saberia o que significava SOCID. Mais do que isso, eu tinha agora o seu endereço.

Senti-me na obrigação de ir, e submeter-me à entrevista. Talvez pela forma inesperada com que dela tomara conhecimento.

Mas o meu lado psicológico não me predispunha a acreditar que dali pudesse resultar o que eu pretendia. Principalmente que viesse a atender o lado financeiro.

Decidi que faria a entrevista, mas para ela fui como às vezes saio para me exercitar: a minha mente levando o meu corpo.

Comparecer àquela entrevista, seria um triunfo da razão sobre a falta de vontade. Isso parece denotar o quanto eu ainda estava arrasado.

Naquela mesma manhã da voz que me falou, e apenas seis dias depois que fora demitido, fui ao cais José Mariano, onde encontrei a SOCID - Sociedade Importadora e Distribuidora Ltda.

Confirmaram-me que o seu Diretor técnico, Caio Pontual, há dias entrevistava estudantes de engenharia para escolher dois estagiários.

Eles trabalhariam no dimensionamento de bombas hidráulicas para diversos fins: comerciais, residenciais e irrigação, entre outros. Afinal, a empresa também fazia projetos de proteção contra incêndios.

As entrevistas porém, não eram realizadas ali. Dr Caio preferia fazê-las durante o período da tarde, no INOCOOP, uma cooperativa habitacional da qual era o presidente.

Na tarde do mesmo dia para lá me dirigi, sendo recebido por sua secretária, que me perguntou: você veio indicado por quem?

Dessa vez a resposta foi: por ninguém!

Disse para que eu sentasse, e aguardasse. Havia mais dois estudantes para serem entrevistados naquela mesma tarde. 

Embora eu tivesse sido o primeiro a chegar, estranhamente eu seria, dos três, o último a ser recebido.

O primeiro dos meus concorrentes, quando perguntado por quem havia sido indicado, respondeu: por F. Pessoa de Queiroz. À época, ele era o equivalente no nosso estado ao atual empresário João Carlos Paes Mendonça, ex-dono da rede de supermercados Bompreço, e proprietário dos maiores Shopping Centers do nordeste. 

Se fora a minha mente que levara o meu corpo até ali, agora foi o meu corpo cansado, que insistiu em permanecer sentado, enquanto a minha mente dizia para ele ir embora.

Ao segundo candidato, que logo em seguida chegou, a mesma pergunta foi feita: quem o indicou? E a resposta também foi, para mim, muito desanimadora: Lula Pontual, filho do Dr Caio Pontual.

Demoraria um pouco até que eu cruzasse a porta daquela sala, cujo interior me chamaria atenção pela sua perfeita organização, que ia dos simples papéis sobre a mesa, à disposição do mobiliário. 

A sala era espaçosa e clara, iluminada pela luz natural que penetrava por duas grande janelas, que também deixavam passar o ar que a tudo arejava. 

Uma cadeira me esperava, para que sentasse de frente àquele homem de traços lusitanos, que certamente herdara de alguns dos seus ancestrais.

Dr Caio Pontual cumprimentou-me educadamente, indicou-me a cadeira, e pondo uma folha de papel no tambor de uma máquina de escrever à sua frente, começou a datilografar minhas respostas às suas perguntas sobre dados pessoais, que incluíam saber até sobre a minha religião.

Ele só não me pareceu preparado para o quanto logo mais eu o desconsertaria. Talvez achasse que estava à frente de apenas mais um candidato, o qual não fugiria do que já lhe era esperado.

Isso não era de todo verdade. Os outros tinham em comum a expectativa de saírem-se muito bem naquela entrevista, e se possível serem escolhidos.

Eu era um garoto a quem, se ainda faltava esperteza, ela estava fartamente compensada por uma visão recente do quão limitados somos para influir naquilo que a vida nos reserva. Há dias me entregava à sorte, deixando-me levar, como uma cortiça na correnteza.

Por isso causei espanto ao responder à primeira questão que me foi dirigida , a qual, entendi, avaliaria a minha aptidão para preencher uma daquelas vagas.

Perguntou-me o Dr Caio: você entende de bombas hidráulicas?

Respondi tão ligeiro e consciente, como se estivesse respondendo o quanto queria ganhar: não sei nem para onde vai!

A reação do Dr Caio, ao levantar os olhos da máquina para mim, não foi de reprovação. Foi de interesse e curiosidade.

Após um breve silêncio, o suficiente para não se tornar constrangedor, Dr Caio disse o seguinte: gostei da sua honestidade. Já entrevistei dezenas de colegas seus, e todos ousaram me dizer que entendiam sim, de bombas hidráulicas. Ora, eu estou no ramo há 35 anos, e só agora penso estar começando a entender um pouco, da porca, do parafuso! Como pode um estudante que nem sequer ainda se aventurou em meio às experiências da vida prática, dizer  que entende de bombas hidráulicas?

Devo dizer que naquele instante percebi que algo muito importante acontecera. Eu até ali apenas achava que era um candidato incomum, e agora tinha a certeza.

A entrevista tomaria rumos menos formais do que começara. O Dr Caio quis saber um pouco mais sobre mim, sobre onde eu já trabalhara, quais os meus planos atuais e futuros.

A tudo devo ter respondido tão satisfatoriamente, que chegamos à minha pergunta preferida.

Foi com uma justificável sensação de "déjà vu" que ouvi a tal pergunta: Qual a sua pretensão salarial?

Um pouco mais a cavaleiro do que da primeira vez, eu havia aprimorado a minha resposta: quero ganhar o mesmo que recebia no meu emprego anterior, isto é, Quinhentos Cruzeiros Novos mensais.

Dessa vez não ouvi risos nem ironias, pois o sentimento foi de respeito.

Dr Caio Pontual já havia encontrado quem queria contratar. Foi o que logo percebi, enquanto me controlava para não me alegrar antes do tempo.

Ele confirmaria isso em seguida, dizendo: quando você entrou nessa sala, eu já havia escolhido os dois estagiários a quem contratar. E dizendo isso apontou para dois dossiês que estavam separados, sobre a mesa. 

E prosseguiu: Acontece que você é a pessoa que estive procurando. Os estagiários que pretendi, seriam para que cada um trabalhasse por meio expediente. 

E me perguntou: Você poderia trabalhar os dois expedientes comigo? Eu o liberarei sempre que você tiver necessidade, por conta do curso.

Eu, que pensava não haver para mim resposta mais fácil do que "aquela", descobri que havia sim!

Naturalmente, e para que as coisas não ficassem inteiramente ao céu, o Dr Caio me pediria para aceitar nos primeiros três meses, que seriam admissionais, um salário de Quatrocentos Cruzeiros Novos. Após esses três meses "de experiência", automaticamente passaria aos Quinhentos Cruzeiros Novos pretendidos. 

Antes do aperto de mãos que sacramentaria a assinatura do contrato, a pergunta e a resposta finais, foram:

- Quando você pode começar?
- Agora.

Concluído o meu primeiro mês de trabalho, o Dr Caio Pontual autorizou, para minha surpresa, que o meu salário passasse para os Quinhentos Cruzeiros Novos.

Finda a entrevista, e ao passar pela secretaria em direção à rua, duvido que a secretária, ainda que a ela apenas tivesse cumprimentado, não tenha tido a certeza de que eu fora escolhido!

Uma vez lá fora, desnecessária era aquela calçada. Meus pés nela não tocavam! Era como se eu fosse um drone que alto voava e era de lá que contemplava a vida.

Eu alçara voo outra vez, e agora não mais seria abatido.


quinta-feira, 26 de março de 2015

Tudo Pode Acontecer - Ato I (1/5)



O ano de 1978, me impôs a necessidade de realizar duas conquistas pessoais de grande magnitude. E com urgência!

A primeira seria empregar-me.

A segunda, ganhar o salário de um engenheiro iniciante, embora ainda faltassem mais de dois anos para me formar.

O primeiro passo nessa direção, seguiu a notícia de que a Eletromar, empresa com sede no Rio de Janeiro e escritório em Recife, onde eu morava, estava ampliando o seu quadro de pessoal.

Fui estratégico. 

Comecei por descobrir a firma comercial da cidade, na área de eletrodomésticos, maior compradora dos produtos fabricados pela Eletromar.

Era a loja Pedrosa da Fonseca, cuja sede ficava à rua do Hospício, quase vizinha ao antigo teatro do Parque.

Falar com o dono da loja seria um desafio muito maior do que aquela pesquisa preliminar feita sem auxílio do Google.

Após  todas as tentativas que foram necessárias, fui levado à presença do Dr Pedrosa da Fonseca, a única forma que seus auxiliares diretos encontraram de se verem livres de mim.

Finalmente na sua presença, pareceu-me que ele não tinha muito tempo a perder. Apressou-se, logo perguntando o que eu desejava.

Apresentei-me, e expliquei-lhe.

Foi inspirado pelo James Bond, que falei: meu nome é Jucá. José Jucá.

E sentindo-me auto-confiante e poderoso, emendei: 

Estudo engenharia elétrica, sou aluno do terceiro ano, e pretendo uma vaga de auxiliar técnico na Eletromar.

E prosseguindo:

Sei o quanto é importante para os que contratam, que os candidatos sejam precedidos por boas indicações. O senhor é o maior comprador de produtos da Eletromar da cidade, e do nordeste. O que eu gostaria era que pudesse me apresentar a eles.

O Dr Pedrosa ouviu-me com atenção, e pareceu despreocupar-se de estar perdendo tempo, o que tomei por um ótimo indicativo de sua boa vontade.

Perguntou-me então:

Você se interessaria por um emprego que eu lhe conseguisse em algum outro lugar?

Respondi que sim, sem titubear.

Seguiram-se várias ligações que do Dr Pedrosa para diretores de empresas locais, na tentativa de descobrir quem necessitava de um estudante de engenharia "despachado".

A Eletromar, entretanto, permaneceria como a única opção.

Disse então o Dr Pedrosa: meu contato na Eletromar é o Sr Quental, chefe de vendas, funcionário antigo, um homem muito educado e atencioso, com prestígio junto à diretoria.

Logo depois, de lá eu sairia após os devidos agradecimentos, levando um cartão no qual fora atendido o meu pedido, indicando-me para a função de auxiliar técnico.

No velho prédio da rua da Aurora onde funcionava a Eletromar, o meu acesso ao Sr Quental foi surpreendentemente fácil! 

Ele aparentava mais de sessenta anos, e os cabelos grisalhos pareciam ter sido adquiridos todos ali. Muito branco, e de pele corada, sua vermelhidão e atitudes confusas e apressadas, denotavam um permanente estado de tensão. 

Trocamos muito poucas palavras. A ele entreguei o meu precioso cartão de apresentação. 

O Sr Quental me assegurou que eu seria entrevistado naquele mesmo dia, pelo Sr Constantino, diretor regional da empresa. Não poderia contudo avaliar quanto tempo eu teria de esperar por isso.

Não me senti confiante no papel do Sr Quental, nem tampouco na importância que dera àquela indicação do Dr Pedrosa da Fonseca.

Em seguida fui conduzido ao piso superior, onde em uma ante-sala já aguardavam outras pessoas. Ali me foi indicada uma cadeira onde poderia "esperar sentado".

Incrivelmente, não demorou para que me dissessem para entrar na sala, onde por trás de um imenso birô, escondia-se a figura de um homem baixo, gordo e arrogante.

Um dia de grandes surpresas estava apenas começando. Assim, várias pessoas eram chamadas de cada vez. 

O Sr Constantino atendia empresários, e ao mesmo tempo, candidatos a emprego. Candidatos a emprego para diferentes funções, eram entrevistados simultaneamente uns em presença dos outros. A anarquia comportamental era completada, quando além de tudo isso, entravam na sala ora a sua secretária, ora demais funcionários que ele mandava chamar. Com eles tratava de assuntos internos, ou simplesmente os destratava.

Embora desde o início daquele expediente eu já tivesse sido recebido naquela sala, lá permanecia sentado à frente do seu birô, sem que a entrevista começasse.

Enquanto isso o Sr Constantino dava atenção a outras pessoas, cujo atendimento às vezes terminava, e outros eram recebidos nos seus lugares. Quanto a mim, continuava a aguardar, tomado de um certo sentimento de invisibilidade.

Em determinado momento, estiveram sentados à minha esquerda, visivelmente constrangidos, o dono de uma importante construtora civil da nossa região, e o seu filho, um rapaz que deveria ter aproximadamente a minha idade.

Foi dirigindo-se a eles que o Diretor protagonizou a primeira das incríveis cenas que eu ainda haveria de presenciar.

Prosseguirei esse "Tudo Pode Acontecer" na postagem seguinte: Ato II. 

Tudo Pode Acontecer - Ato II (2/5)


DONA JUDITE, berrou o Diretor ao interfone, e a porta da sala já se abria para dar passagem a uma secretária esbaforida, que se apressava para não desagradá-lo. 

Procure o telefone do Dr Matoso dos Reis. Ordenou-lhe em voz alta e autoritária.

Dona Judite já com o grosso catálogo telefônico nas suas mãos trêmulas, talvez nem enxergasse as páginas! Quanto mais aquela abundância de números, dos quais só precisava de um.

E já berrava outra vez o feitor Constantino: Dona Judite, vejo que a senhora ainda não aprendeu sequer a achar um simples número na lista de telefones. Grande secretária que a senhora é! Faça-me então o favor: retire-se imediatamente. Leve consigo esse catálogo telefônico quando for para a sua casa. Aproveite o seu fim de semana treinando encontrar números telefônicos na lista, para ser eficiente da próxima vez que eu precisar.

Dona Judite caiu em pranto, e dali retirou-se com a lista nas mãos. Nem sei como lhe foi possível reencontrar a porta por onde há pouco entrara.

E foi voltando outra vez aos empresários ao meu lado, que aquele homem ensandecido, agora em tom ameno, continuou desta vez sorridente e bem humorado:

A Dona Judite trabalha comigo há muitos anos! Outro dia vocês não sabem o que me aconteceu! Convidei-a para passar um fim de semana comigo, na casa de campo que tenho em Gravatá. Vocês sequer imaginam! Primeiro, que ela topou na hora. Fui para lá no fim de semana conforme combinado. Estava a esperá-la, na expectativa dos dias que passaríamos juntos, quando finalmente ela chegou. Com ela trazia o noivo!

Seguiram-se boas gargalhadas do autor dessa história, diante do olhar incrédulo de todos nós que mal acreditávamos no que ouvíamos. 

Em seguida sairam o pai e o filho, para em seus lugares sentarem dois candidatos à uma vaga de vendedor.

E enquanto isso, voltava-se para mim o diretor carrasco, para iniciar uma entrevista que se ali teria começo, não parecia que teria fim. Por sentir-me no foco e pelo teor tão carregado de apreensões, mais parecia que eu era o alvo de uma CPI.

Disse-me inicialmente o Sr Constantino:

Então, você é o interessado na nossa vaga para auxiliar técnico! Pelo menos você sabe como se grafa a palavra Ohm? E estendendo-me uma folha de papel em branco e uma caneta, ausentou-se da sala por alguns instantes. 

Subentendi, achando estranho, que ele pretendia que ali eu escrevesse o sobrenome daquele que foi o autor da mais popular das leis da eletricidade: a lei de Ohm. Me senti ridículo, pois não precisava começar a me testar tão de baixo!

Ao voltar, eu já havia "grafado" a palavra Ohm na folha de papel até a pouco imaculadamente branca. O fiz em letras garrafais decidido a que não perderia chance de exaltar os meus saberes. 

Mais de uma hora entretanto passaria, até que outra vez ele voltasse a me dar atenção.

Enquanto isso, aproximou-se dos dois nervosos candidatos a vendedor. Em pé junto a eles, tinha as duas mãos nos bolsos. E foi assim que perguntou, sem definir a quem dirigia a palavra:

Quanto vocês ganhavam, no seu último emprego como vendedor?

Um dos candidatos iniciou balbuciante a responder, dizendo:

Na minha carteira de trabalho consta...

Foi interrompido pelo entrevistador, com indelicadeza:

Não perguntei ao senhor o quanto consta na sua carteira de trabalho. Perguntei isso sim, quanto o senhor ganhava.

Na sequência, e parecendo desinteressar-se da resposta, prosseguiu:

Vocês já conheceram o Sr Quental?

E outra vez ao interfone, gritava a plenos pulmões: Dona Judite, diga ao seu Quental que estou chamando.

Era incrível a rapidez com que as ordens de comando daquele homem eram obedecidas. Logo entrava na sala o Sr Quental que agora, além de tudo, suava. 

Assim falou o Sr Constantino aos vendedores, na presença do Sr Quental, que aparentava condições emocionais lastimáveis. 

Este é o Sr Quental. O chefe de vendas da Eletromar. Caso os senhores sejam contratados, terão de trabalhar subordinados a ele. Chamei-o aqui para apresentá-lo e dizer que o Sr Quental é o símbolo da incompetência, e do fracasso resultante da sua inoperância. 

E virando para o Sr Quental:

Pode se retirar! Chamei-o apenas para que eles o conhecessem.

O Sr Quental retirou-se lívido, e com ele as minhas últimas esperanças.

Em seguida eram dispensados os dois possíveis futuros vendedores, que aparentemente saiam com suas entrevistas inconclusas. A mim não pareceu que viessem a ser contratados. 

Era chegada a hora do almoço. O Sr Constantino já apanhara o paletó e agora o vestia. Completava-lhe a indumentária, um chapeuzinho que parecia de feltro, à antiga moda Nat King Cole. Sem olhar para mim, falou algo que deduzi ser comigo, pois era o único dos coadjuvantes na sala.

Acho melhor, para ganhar tempo, que me acompanhe enquanto eu almoçar.

E em seguida emendaria:

Não! Prefiro que você também vá para o seu almoço, e volte às 14 horas para continuar.


Prosseguirei esse "Tudo Pode Acontecer" na postagem seguinte: Ato III. 

Tudo Pode Acontecer - Ato III (3/5)


Eram 14 h e lá estávamos nós outra vez, parece que agora eu receberia atenção. Era enfim chegada a minha vez!

Seria contudo uma atenção descontinuada, pois o Sr Constantino insistia em fazer várias coisas de uma só vez.  Isso o ajudava a ser desatencioso com quem por ele esperava.

Antes de ater-se ao propósito da minha presença, o Sr Constantino sem me fitar, desfiou comentários ácidos dirigidos ao Sr Quental, a quem insistia em agredir, enquanto se enaltecia.

O Sr Quental, dizia ele, entrou nessa empresa a quase 40 anos, e nunca passou de um reles vendedor. Quanto a mim, ainda não completei 20 anos! Entrei como simples varredor, e hoje sou Diretor regional, e lhe digo: não vou parar por aqui.

Foi quando de súbito, apanhando a folha onde se lia a palavra Ohm, voltou a entrevista que mal iniciara horas atrás: vejo que você sabe grafar a palavra Ohm. Disse ele, como se considerasse isso uma grande coisa!

E reiniciando:

Sei que você é estudante de engenharia. Por isso quero logo saber: havendo a necessidade de escalar em um poste de de 8, ou 9 ou 10 metros de altura para trocar uma luminária; você é capaz de subir? 

A minha resposta foi algo socrática:

Por que não?!

Nova interrupção acabava de acontecer! Talvez para não perder outra vez a continuidade daquelas malucas interações, o Sr Constantino antes de retirar-se por alguns instantes, abriu uma das suas gavetas. De lá ele retirou uma régua, uma fita métrica e um paquímetro. Entregou-me, e junto com eles uma folha de papel em branco, daquelas que desde a minha escola primária, ouvia chamar de "folha de papel almaço". Pareceu-me tratar-se de uma gincana, quando disse para mim: "meça as dimensões dessa folha".

Saiu deixando-me intrigado com o inusitado  pedido.

O paquímetro é um instrumento geralmente de aço, de larga utilização para a medição de pequenas dimensões de peças, em oficinas mecânicas.  

Deduzi que o meu "entrevistador" o que pretendia era saber se eu conhecia a finalidade de um paquímetro. Para demonstrar que sim, eu deveria apresentar-lhe como as dimensões da folha de papel, além do seu comprimento e largura, a sua espessura.

Outra longa espera decorreu, até que ele voltasse para dar atenção ao meu resultado.

A sua reação seria satisfatória, o que revelou-se ao dizer: vejo que você sabe para que serve um paquímetro!

Sejamos objetivos então, disse-me ele, passando a próxima pergunta:

Caso você venha a trabalhar conosco, quanto você pretende ganhar?

Incrivelmente talvez para alguns, essa nunca foi para mim, uma pergunta que me causasse embaraço. As circunstâncias ditadas por necessidades familiares, sempre me impuseram pretensões salariais acima daquelas oferecidas pelo mercado. A elas porém eu era sempre muito fiel.

Imbuído portanto de grande sinceridade e de comovente esperança que beirava a ingenuidade, essa resposta eu a tinha de cor. Até já era capaz de dá-la sem nem pestanejar.

Quinhentos Cruzeiros Novos naquele época, era o salário inicial dos engenheiros recém formados. Quanto a mim, faltavam ainda pouco mais de dois anos de conhecimentos para que eu pudesse me graduar. Mesmo assim, respondi confiante:

Quero ganhar Quinhentos Cruzeiros Novos mensais.

Essa foi a primeira vez que provoquei risos apesar de estrar falando muito sério. Até então, o Sr Constantino ainda não tinha sido muito indelicado comigo! Só um pouco! Apenas desatencioso, o que é certamente um tipo de indelicadeza. Como não perdeu o controle diante das minhas pretensões salariais, e apenas as ridicularizou, conclui que seria tratado satisfatoriamente até o final. Seja lá qual fosse o final!

Voltando a ficar sério, ele então ironizou:

Você está querendo ganhar muito pouco!!!

E riu muito outra vez!

Em lugar de me despachar porém, submeteu-me ao que poderia ser considerado, uma grande crueldade.

Colocou as coisas nos seguintes termos:

O seu emprego vai depender de se conseguirá responder a minha última pergunta. Caso você saiba, o emprego é seu. Se não souber responder, estamos conversados.

A pergunta é, disse ele:

Em que se baseia o princípio de funcionamento de um paquímetro? Descreva-o.

Considerando a minha especialidade na engenharia, que é na área de eletricidade (eletrotécnica), a mim estava sendo dirigida uma questão apropiada para alguém da área de mecânica.

Aquela "pergunta final", ninguém poderia imaginar o que provocou dentro de mim. Nem seria possível por em palavras, a mistura de alívio, alegria e plena realização de um árduo objetivo. 

Mal consegui dissimular o quase estado de euforia que naquele instante se desencadeou. Aquela pergunta para mim era fácil! Ajudou a me conter, a lembrança de que a minha carteira de trabalho ainda não fora assinada! Mas responder aquela pergunta eu sabia muito bem.

Fazia pouco tempo que concluíra um curso intensivo de dois meses, oferecido pelo Departamento de Águas e Energia (DAE). Foi um treinamento para formar monitores para atuarem no ensino de técnicos de nível médio. 

Aprendera nas suas oficinas, práticas extra-curriculares às escolas de engenharia, tais como técnicas usadas para amarração de cabos condutores de linhas de transmissão, confecção de peças em tornos mecânicos, em especial parafusos, e utilização do ferramental básico, entre eles, e com destaque especial, devido a sua importância, o paquímetro.

Na minha memória recente, estava o paquímetro gigante confeccionado em madeira, para fins didáticos, preso à uma parede da oficina do DAE. Ali aprendera que o seu princípio de funcionamento baseava-se no Nônio e Vernier. Nônio que provém de Pedro Nunes, astrônomo e matemático português, e Vernier, do matemático francês Pierre Vernier, os seus inventores. 

Na minha memória estavam aquelas partes deslisantes do paquímetro, e nelas as suas escalas, bem como a  forma gráfica de descrevê-las com a riqueza de detalhes que só a sua clara compreensão permitiria. 

Por fim me acalmei, e concentrando-me no que ainda restava fazer, iniciei a minha redação que preencheria pouco mais que duas das quatro páginas daquelas "folhas de papel almaço".



Prosseguirei esse "Tudo Pode Acontecer" na postagem seguinte: Ato IV. 

Tudo Pode Acontecer - Ato IV (4/5).



Foi com indisfarçável surpresa, que o senhor Constantino lançou o seu olhar sobre aquela descrição que de tão clara, objetiva e detalhada, certamente não esperava ver.

Embora eu vestisse uma discreta camisa polo marrom, apesar de uma lista horizontal beje a altura do peito, restou ao Sr Constantino, para finalizar, voltando-se para mim confirmar meu emprego dizendo: 

Venha amanhã às oito horas para trabalhar. Mas, venha vestido com uma camisa mais sóbria, mais adequada.

A minha história naquela empresa estava apenas começando.

Era uma segunda feira, quando cheguei cedo à Eletromar, para o meu primeiro dia de trabalho. Aguardei a presença do Sr Constantino, para que autorizasse ao chefe do setor pessoal, os procedimentos administrativos formais, como o preenchimento de dados e assinatura da carteira de trabalho.

O senhor Uchôa, responsável por essas providencias, ouviu do Sr Constantino as seguintes palavras:

Este rapaz, vai trabalhar conosco. Salário: ponha quinhentos Cruzeiros Novos. Mas, faça constar que por um dinheiro desses, ele terá que trabalhar também aos sábados, domingos e feriados.

Aliviei-me do meu receio final de que aquele homem pudesse voltar atrás, e descumprisse a aparente aceitação das minhas bases salariais. Naquele mesmo dia eu tive a minha carteira de trabalho devolvida assinada, com tudo de acordo com o que eu esperava.

O Sr Uchôa, logo que o diretor afastou-se, tranquilizou-me dizendo: esse homem parece enlouquecido! Como pode desconsiderar que temos leis trabalhistas? A sua jornada de trabalho será igual a de todos nós.

Fui então apresentado ao chefe do setor técnico, com o qual iria trabalhar, o Sr Silveira.

O lugar ocupado pelo Departamento Técnico era um espaço físico nobre, e as suas instalações caprichosamente organizadas pelo Sr Silveira, tornavam o ambiente convidativo para o desenvolvimento dos trabalhos. Grande parte deles seria fazer projetos de instalações elétricas.

O Sr Silveira era um técnico experiente, trabalhando sob a insatisfação generalizada de uma empresa que vivia um momento muito crítico, em consequência de sérios problemas administrativos da responsabilidade do seu transtornado diretor.

Envolvi-me com o meu primeiro trabalho, o que tornaria os meus dias iniciais por demais absorventes. Tratava-se de um projeto de iluminação para uma fábrica de relógios que então se estabelecia na cidade interiorana de Garanhuns.

No plano pessoal, familiar, tomei decisões que o meu salário agora permitia, para adequar as nossas vidas às condições financeiras recém conquistadas a tão duras penas.

Como minha mãe havia falecido fazia pouco mais de um ano, agora éramos quatro. Maria, a boa e leal acompanhante de sempre da nossa família, o meu pai em estado depressivo desde a morte de minha mãe, o que o impedia de trabalhar, o meu irmão Ronaldo, à época com apenas 13 anos, e eu.

Tempos difíceis para todos, e em especial para mim que acumulava às responsabilidades de casa, com as do trabalho e de um curso "puxado".

Providenciei a mudança para um apartamento de apenas um quarto, no então longínquo terminal de ônibus do bairro de Casa Caiada, em Olinda. Voltava de ônibus tarde da noite, exausto do trabalho e da faculdade, costumando adormecer no trajeto. Não raro era despertado pelo motorista, que batia com força na tampa do motor, avisando: TERMINAL!

Lembro do quanto, agora que a vida "entrara nos eixos", eu buscava aproveitar o máximo do meu tempo. As novas condições permitiram até que eu me matriculasse em um curso de inglês!

A que horas conseguiria o inglês estudar? As aulas eram bem cedo da manhã. Das 7 h às 7 h 45, três vezes por semana, em um Yázigi no centro da cidade.

Certo dia, ao chegar ao trabalho, fui surpreendido pela presença na nossa sala, da secretária do Sr Constantino, a maltratada Dona Judite.

Ela dirigiu-se a mim dizendo: O Sr Constantino mandou que eu lhe procurasse e me pusesse à sua disposição.

Não pude imaginar o que aquilo significava, além de que era o Sr Silveira e não eu, o responsável pelo setor. Como ele ainda não havia chegado, e em busca de maiores esclarecimentos, dirigi-me à sala do nosso incomum diretor. 

Disse-me então o Sr Constantino: quero que você desocupe o local onde hoje trabalha com o Sr Silveira. Para fazê-lo peça à Dona Judite, o que precisar. Inclusive pessoas que levem para o nosso depósito, os birôs, estantes, painéis... e tudo mais que lá houver. A ordem é esvaziar por completo aquela área. Pode começar!

Não demorou para que o nosso Departamento Técnico se tornasse irreconhecível. Ainda havia porém muitas coisas para retirar, quando chegou o Sr Silveira. 

Jamais esqueci o impacto que a sua visão de tamanho desmantê-lo nele provocou. Por instantes o vi permanecer estático, pálido, estarrecido, incrédulo e ao mesmo tempo indagador.

Ordens do Sr Constantino. Encarregou-se a Dona Judite de a ele esclarecer.

Só muito lentamente, o Sr Silveira se refaria daquele imenso susto. Suas primeiras palavras saíram gaguejadas, quase inaudíveis. Deve ter tentado dizer algumas dessas coisas que só revelam a impotência diante de uma situação.

Terminada a mudança fomos nós fazer companhia ao amontoado de coisas dispostas desorganizadamente em uma pequena parte daquele imenso almoxarifado mal iluminado e sem ventilação. 

Não seria contudo por muito tempo. Nossos trabalhos estavam paralisados, agora que nos foram tiradas as condições de fazê-lo. A insatisfação dos empregados alcançava o auge. Um relato minucioso de tudo que por lá estava acontecendo, fora enviado para a matriz no Rio de Janeiro.

Quem sabe aquela atitude tão drástica ordenada pelo Sr Constantino era decorrente da sua desconfiança da participação do Sr Silveira, nessa ação.

Logo espalhou-se a notícia de que dois interventores estariam a caminho e que o Sr Constantino estaria com os seus dias contados na Eletromar.

Não demorou para termos a confirmação de que amanheceriam lá, no dia seguinte, esses dois respeitáveis senhores, que viriam por ordem na casa. 

Funcionários que por terem sofrido humilhações do Sr Constantino o detestavam, agora exultavam. 

Senti nascer nas pessoas, uma vontade imensa de assistirem ao encontro do Sr Constantino, com aqueles interventores. A atmosfera era de revide, de vingança... Queriam vê-lo submetido, subjugado, se possível humilhado e depois capitulado. 

Como programado, amanheceu o tão esperado dia, e chegaram conforme ansiosamente esperado, aqueles dois senhores.

Que tal eu prosseguir em "Tudo Pode Acontecer" no Ato V, que será o epílogo?

Tudo Pode Acontecer - Ato V (5/5).



Amanheceu o tão esperado dia, e eis que chegaram os tão esperados interventores. Mais respeitáveis, impossível. Sem dúvida que pessoas da mais alta hierarquia. Inspiravam confiança na capacidade de vencer os maiores desafios, e soerguer qualquer empresa.

Puseram-se a vontade em meio aos funcionários, aos quais quiseram conhecer nominalmente. Simpáticos, conversavam amistosamente com todos, enquanto aguardavam a chegada do Sr Constantino, "O detestável".

Finalmente a porta de entrada se abriu, e de lá soou um alto e sonoro BOM DIA, diria que retumbante! Eis que chegava o esperado quase ex-diretor, para o mais que esperado encontro, com os seus carrascos, na frente dos empregados.

Fez-se um silêncio geral, o que só ressaltou a chegada daquele homem baixinho, obeso, de terno e chapeuzinho de feltro, para o qual voltavam-se todas as atenções.

Foi sob todos esses olhares curiosos que Constantino cantarolante, caminhou em direção aos interventores. Ao deles se aproximar apressou o passo, e ensaiando uma breve corridinha, ao passar por eles sem ligar a mínima para as suas presenças, levantou uma das pernas e uma flatulência sonora soou ajudado pela acústica do saguão. 

Dois ou três dias depois, aguardados com muita impaciência, Constantino saia de férias para nunca mais voltar, tendo aquela, sido a sua mensagem de despedida final.

Nascia então, a boa expectativa de uma gradativa volta à normalidade. Eu estava ali a quase três meses e ainda não tivera a oportunidade de assistir o funcionamento normal de uma empresa. 

Retomamos começando pelo restabelecimento do Departamento Técnico, para que pudéssemos voltar a trabalhar como antes. 

Os interventores, terminaram os seus primeiros relatórios que além de relatos, incluíam suas recomendações, e os enviaram para o Rio de Janeiro.

Novos boatos começaram a circular, de que viriam por aí medidas administrativas que a muitos poderia afetar. 

O clima de alívio que tomara conta do ambiente se desfez. Voltaram todos a sentirem-se tensos e preocupados, como já estavam acostumados.

Logo circulou à boca miúda, a palavra mais temida: demissões.

A sala onde antes trabalhava um homem atormentado por uma doença psicológica ou mental, continuaria para muitos, a sala dos tormentos. 

A cada dia empregados eram lá chamados para que a eles fossem comunicadas as suas demissões. E aumentava a quantidade dos que eram demitidos, sem que se soubesse quando aquilo tudo iria terminar. 

Foi lá, naquela sala, com o imenso birô que fora do Sr Constantino em outra posição, lugar onde eu a tão pouco tempo conquistara a duras penas aquele emprego e aquela condição, que fui abatido em pleno voo.

Aqueles interventores deviam ser diretores de verdade! Sabiam demitir muito bem. Demitiram-me da melhor maneira possível. Alegres, simpáticos, chegando até a ser agradáveis, e demonstrando grande otimismo em relação ao meu futuro. Em outro lugar!

Comentaram que as razões daquela medida não eram pessoais, e que apenas as admissões feitas pelo diretor anterior precisavam ser revistas.

Disseram sentir vontade de que fosse possível me manter, mas que eu estaria saindo contemplado pelo que me asseguravam as leis trabalhistas, e que eu era muito jovem, tinha um futuro pela frente, e o potencial para ir trabalhar noutra grande empresa. Eu ouviria, ir trabalhar em outra freguesia.

Esqueceram-se de considerar o quanto seria quase impossível, recuperar em outro emprego, o meu salário atual. Só mesmo um doido, pagaria o salário de um engenheiro recém formado, a um estudante de engenharia, na metade do curso. Foi o que pensei!

Fechara-se esse ciclo, e nem contar ao meu pai eu poderia. O jeito era guardar aquele segredo, levantar a cabeça, e procurar outro emprego. 

Enquanto isso, naquele dia, voltei para casa o mais triste e desamparado, que alguém poderia se sentir. 

E ponto final.



Obs: 

Relatarei nas próximas postagens, sob um titulo que ainda nem escolhi,  a sequência desses fatos, já que como se sabe a eles sobrevivi.

O Sexto Sentido.

Uma Volta ao Mundo, Dançando!