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segunda-feira, 16 de março de 2015

Auspiciunt oculi duo lumina clarius uno.



Eu já sabia que aquela história de cegonha era papo furado. Não associei porém toda aquela movimentação no quarto ao lado, à chegada do meu irmão.

Foi durante a madrugada que despertei com o barulho, e quis levantar para ver o que era. A ordem de meu pai foi mais taxativa que o habitual: volte já para cama. O dia ainda não amanheceu!

Ali nos tornávamos três irmãos, separados um do outro por 7 e 8 anos. Me divirto afirmando que só depois de adulto vim a descobrir que Joselice era minha irmã. Também contribuiria para isso, que muito cedo ela foi mandada do Crato para o Recife para ali estudar.

Quanto a Ronaldo, veio quando meus pais talvez já nem esperassem. Ele foi esse tipo de criança que chamam de temporão. Que tem rima com furacão.

Durante a gestação minha mãe recebia muitas visitas. Porém nenhuma delas era mais frequente do que as de sua prima Lurdinha Esmeraldo.

Sempre achei intrigante que os Esmeraldo de Dona Lurdinha, fossem tão próximos e se considerassem parentes dos Melo da minha mãe.

Para tudo há uma explicação. Foi que, certo dia, um ancestral da família Melo sofreu bullying na escola. Ele era tão menor que os outros, que logo passaram a chamá-lo de "esmirrado".

Empenhada em consertar aquilo, a professora reuniu os alunos envolvidos e chamou-lhes a atenção. E para evitar que continuassem a chamá-lo por adjetivo que considerava pejorativo, sugeriu: Não o chamem mais de esmirrado. Quando lhes der essa vontade, substituam por Esmeraldo! Estava fundada, a partir da família Melo, a nova família Esmeraldo.

Dona Lurdinha nunca se casou! E era uma católica tão praticante, que achava uma sorte morar quase vizinha da igreja.

Não havia distância que a impedisse de participar dos então chamados Congressos Eucarísticos, e gozava na cidade da admiração por conhecer até o Vaticano.

Minha mãe também era católica, mas nunca ligou de morar um pouquinho mais distante da igreja. Ela costumava rezar mesmo em casa. 

Coube a Dona Lurdinha, por iniciativa de minha mãe, ensinar-me a ajudar missas, que naquela época eram celebradas em latim.

Coube ao meu pai, depois que tudo aprendi, e já poderia ajudar qualquer missa com muito desembaraço, proibir que eu virasse coroinha. Mas não viria só daí a identificação que criei com o meu pai.

Diria o padre:

-  Quia tu es, Deo, fortitudo mea: quare me repulisti, et quare tristis incedo, dum affligit me inimicus?

Minha parte:

- Emitte lucem tuam et veritatem tuam: ipsa me deduxerunt, et adduxerunt in montem sanctum tuum et in tabernacula tua.

Muito do que com Dona Lurdinha aprendi aos oito anos, não teve jeito de sair mais da minha memória. Ainda que a mim escapasse o seu significado.

Não é verdade que para mim nada serviu esse aprendizado. Primeiro, o latim que eu viria a estudar durante o meu curso ginasial, no Colégio Nóbrega em Recife, não me assustou! Ao contrário, despertou o meu interesse. Segundo, ao visitar no convento uma prima que é freira da Ordem das Carmelitas Descalças, costumo me distrair recitando textos em latim, sendo que escolho sempre os não canônicos.

Assim, inspirado no que disse Cícero referindo-se a Catiilina, sinto às vezes apropriado dizer:

Quosque tandem abutere Madre Superiora patientia nostra?

Como sabemos: Por que abusas Madre Superiora da nossa paciência?

Voltando porém à minha professora de missas, lembro que ao visitar a minha mãe, Dona Lurdinha costumava profetizar que Ronaldo, a criança que a minha mãe esperava, nasceria de parto normal, "no dia do Coração de Jesus". 

Distante que estávamos dos folguedos de São João, surpreendente foi constatar, muitos meses depois, que ela tinha razão. 

Foi na madrugada do dia 17 de junho daquele ano, que eu fui acordado pelo nascimento do meu irmão. 

Amanheceu e pude finalmente deixar a cama e o meu quarto. Saber da boa novidade. Dar uma espiada no bebê, perdido no meio de um berço de madeira enorme, no qual eu dormira até pouco tempo.

Cobria todo o berço, um bonito cortinado. O quarto muito escuro mesmo durante o dia, e cheirava a alfazema. Era um ambiente típico do então início de resguardo.

Recebi a incumbência de logo após tomar café, ir à casa de Dona Lurdinha a ela avisar.

Pois foi no beco do padre Lauro, ao passar pelo pé de sapoti, que me deparei com Dona Lurdinha Esmeraldo. Antecipando-se à notícia, tão cedo da manhã já vinha nos visitar.

- Bem que eu disse! Eu falei!

Dizia Dona Lurdinha animada, logo ao saber. E, como futuramente se tornaria comum isso de escreverem em cartolinas para mostrar às câmeras de TV em estádios de futebol, hoje sei que ela antecipava-se outra vez no tempo, ao também dizer:

- Eu já sabia!

Caminhamos juntos até a nossa casa, e exultante ela entrou. Logo foi admitida no quarto onde deitada estava a minha mãe e, ao seu lado, o rebento recém chegado. 

Aproximamo-nos do berço, e para que melhor ela pudesse ver o menino, eu mesmo afastei o cortinado.

Dona Lurdinha olhava enquanto falava:

- Alice, seu filho é lindo!

Tentei interrompê-la, chamando-a:

- Dona Lurdinha...

Ela porém estava embevecida:

- Que narizinho tão afilado!

Eu insistia:

- Dona Lurdinha...

Ela prosseguia:

- Tão coradinho, meu Deus!!!

Persisti:

- Dona Lurdinha...

Mas Dona Lurdinha estava mesmo maravilhada com a criança:

- E que cabecinha mais linda...

Talvez pela última vez, insisti:

- Dona Lurdinha...

Finalmente, voltando-se para mim, ela falou:

- Sim, meu filho?

Pude enfim avisar:

- É que a cabeça dele está para o outro lado!


(Auspiciunt oculi duo lumina clarius uno = Quatro olhos veem mais do que dois.)

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