Apenas mais um Blog.

sexta-feira, 13 de março de 2015

A Cerca dos Quase Sem Terras.


Entardecia, e o sol já devia estar se pondo sem que ninguém notasse. Era uma tarde nublada, dessas de garoa fina, e a noite já se aproximava friorenta.

Deitado na rede com um livro nas mãos, eu nem mais lembrava quanto tempo estivera ali tão absorto.

Minutos depois, teria nas mãos, em lugar de um livro, uma arma! Sobre a cabeça, não mais um teto! Em lugar do aconchego, o relento, em lugar da tranquilidade que se foi, o desasossego. Anoitecera, estava escuro e a chuva, agora forte, desaguava sobre a minha cabeça.

Adormecera e então sonhava? Não! Não era nenhum pesadelo. Era vida real. Estava acontecendo um grande exemplo do quanto a vida pode ser imprevisível.

Uns quinze quilômetros separavam minha casa do local para onde, de súbito, me desloquei. A notícia que me mobilizaria instantaneamente, me foi dada sem arrodeios: está lá! No lado não demarcado do seu terreno, o vizinho à direita construiu mais de 300 m de cerca. Faltam apenas uns 100 m para concluir. Ele passou a cerca invadindo 3 m em toda a extensão do seu terreno.

As primeiras palavras que vieram à minha cabeça, chegaram naturais e espontâneas. Ofereceram-se tão graciosamente, quanto inteiramente pertinentes, adequadas! Verbalizei-as incontinenti, enquanto com um pulo me punha fora da rede: Filho da Puta!

Na casa do meu advogado, tocava o telefone. Era eu. Resumi o que se passara e indaguei a solução. 

"Procure-me na segunda feira (era um sábado) e conseguirei que o juiz embargue "a obra". Ele não vai poder concluir os 100 m que faltam."

Formidável! Disse eu. Vou procurá-lo na segunda feira, mas não para isso, acrescentei.

É incrível a mudança que acontece aos muito calmos, tolerantes, pacientes, quando seus limites são ultrapassados. Talvez essa metamorfose tenha inspirado a criação do incrível Hulk!

Para o meu próximo passo, eu precisava de alguns ajudantes. Decidi fazer um serviço típico de homens. Sem muita cautela.

Deparei-me nas vizinhanças da minha casa, com alguns servidores braçais que acabavam de "largar do trabalho". 

Perguntei-lhes:
- Que tal ganhar um dinheirinho para gastarem no domingo?

Dos três, um deles perguntou:
- É aqui perto?
- Pertíssimo.
- A gente topa. É para fazer o quê?
- Derrubar uma cerca.
- A gente não topa.

Deram-me as costas, indo todos embora pensando de mim e da minha brabeza, sei lá o que!

Lembrei do Sr Severino. Porque não pensei nele antes? Severino me era leal. E tinha filhos homens. Ele e a sua mulher já haviam trabalhado na minha casa. Com eles eu poderia contar.

Pedi a alguém que me levasse onde ele morava. Encontrei-o sentado à frente da casa, "puxando" um cigarrinho de fumo de rolo.

Falei:
- Severino, fizeram uma cerca bem dentro do meu terreno e eu preciso derrubar.
- Só se for agora mermo!

O tempo para começar o trabalho, foi só o de chegar lá! Até então, a caminho, sabia sermos: Severino, um filho, um vizinho dele e eu, duas lanternas e muita disposição e vontade, frutos da indignação.

Ao chegarmos, descemos do carro que parei logo junto de onde começava a dita cerca. Chovia copiosamente mas ninguém com isso se importava. O dono do terreno vizinho, autor do laborioso trabalho que iríamos desmanchar, já havia ido embora.

Na área nobre do meu próprio terreno, surgiu da enorme casa de taipa que ele mesmo havia ali construído, o meu inevitável morador, Sr Miguel.

Tantas vezes, pensei eu, ia o Sr Miguel aos domingos à minha casa! Sempre por seus interesses pessoais. Não fora, no entanto, capaz sequer de mandar me avisar sobre essa construção indevida em andamento. Aquilo não fora serviço de apenas dois ou três dias! Demorara muito mais tempo e o Sr Miguel "nem um pio". O Sr Miguel me fora desleal. Meu foco, porém, estava em desfazer a visão horrível daquela cerca.

Fazia um mês que eu fora procurado por aquele vizinho, e estivera com ele ali para tratar desse assunto. Ele me expôs a falta de três metros na largura do terreno dele. O lado direito já estava delimitado pela cerca do seu outro vizinho. Como eu ainda não fizera a cerca que delimitaria o meu terreno e o dele, deu-se o impasse.

Este vizinho comprara uma área que resultara em um terreno com 40 metros de largura, e para tê-la só se entrasse três metros no meu terreno.

Minha conversa com ele foi lógica e racional. Propus que dividíssemos a perda ao meio. Ele faria a cerca entrando um metro e meio dentro do meu terreno e assim se contentaria com 38 metros e meio de largura em lugar dos 40 metros. Da minha parte eu aceitaria ficar com 34 metros e meio, em lugar dos 36 oficiais. 

Ainda que aparentando má vontade, o meu antagonista sinalizou acceder a essa solução, por admitir não haver nenhuma outra tão justa, face as circunstâncias.

Dias depois, porém, aproveitando-se da minha ausência e em claro conluio com o velho Miguel "o desleal", fez uma cerca tão bem feita e bonita, de jeito não combinado, que desmanchá-la daria pena , não fosse ser tão grande a minha indignação.

Era chegada a hora de por mãos à obra:

Aproximou-se de mim o Sr Severino, e perguntou:
- O Sr quer que a gente derrube de modo a depois aproveitar as estacas? Ou quer que a gente tore as estacas no pé?
Respondi sem titubear:
- É pra torá.

Disse então Sr Severino:
- Melhor assim! O serviço vai ser mais ligeiro. O Sr pode esperar aqui em cima, que já já agente volta com o serviço feito. Difícil é fazer uma cerca dessas! Para botar a baixo, todo santo ajuda.

Era o que pensava o Sr Severino.

Contudo, antes de desaparecem na escuridão, o Sr Severino meteu a mão por baixo de sua camisa encharcada, e de lá tirou um revólver que me estendeu, dizendo: Como a gente nunca sabe, pode ser que de repente apareça alguém aí de junto. Convém o Sr ficar prevenido.

As vozes se distanciaram à medida que o serviço avançava, e aumentava rapidamente a quantidade das estacas quebradas bem no pé, depois de uns bons solavancos, porque fortes. Por terra e enfileiradas agora jaziam, dando a impressão de decapitadas.

O Sr Miguel perdera a voz, e de longe apenas me observava os movimentos. Não sabia quão rara era a sua visão de eu ali empunhando um revólver, cara de zangado, aparentemente preparado para o que desse e viesse. E vai ver que estava preparado sim! Em momentos extremos como esse é que a gente se conhece.

Se tudo corresse bem, um pouco mais e o Hulk poderia encolher, e eu até já voltaria para minha rede.

Não pensem que os trabalhadores estiveram tensos durante o trabalho. Lá debaixo me chegava o som de alegres risadas, que pareciam comemorar cada estaca derrubada. Trabalharam alegremente. Alguns gritos comemorativos ecoaram distantes, quando finalmente o serviço chegou ao fim.

Ignorando a presença do Sr Miguel, a quem não era merecido sequer desejar uma boa noite, paguei a minha equipe, devolvi o revólver ao líder, e manobrei o carro de volta demonstrando a mesma disposição e coragem com que chegamos.

Dormi nessa noite como um anjo, sob o sentimento de que recuperara minha dignidade . Fora ultrajado e devolvi o ultraje à altura do merecido. Fizera a minha parte. Meu advogado haveria de fazer a dele.

O domingo amanheceu menos nublado, a chuva amainara, o sol já se insinuava e o meu vizinho empreitador de cerca, deve ter achado que era um bom dia para inspecionar o que fora feito, e pagar aos seus contratados.

Recepcionado pelo Sr Miguel ao chegar ao terreno, teria mudado de cor ao deparar-se com a bagaceira que por lá encontrou. Ele foi da cor branca dos que desmaiam, ao vermelho púrpura dos coléricos. Como se diz na linguagem popular "só faltou ter um menino".

No seu delírio raivoso desenvolveu fantasias mil! Anseios de por abaixo as árvores todas do meu terreno, começando pelas frondosas jaqueiras, disparar tiros na fachada da minha casa, e outras coisas malvadas, tudo isso enquanto esbravejava a filosofar:
- Quem ele pensa que é?

O Sr Miguel, tal como uma Diana de pastoril, com mais motivo Diana tornou-se ao descobrir a outra face do seu "patrão". Deve primeiro ter oferecido uma caneca d'água de pote ao ofendido, e esperado que o sangue dele se espraiasse... Foi só no fim desse trabalho de parto, que o Sr Miguel assim falou:

Sr Zé Firmino, isso tudo foi onte de noite que aconteceu. Chegaro logo dispôis que daqui o sinhô saiu. Deus sabe o que faz, pois a desgraça podia ter sido era pió. Milhó agora é o sinhô se acalmar, porque o "patrão" é brabo, e não tá pra brincadeira. Chegou aqui numa camioneta com três capanga. Tudo armado! Fizeram o que vieram pra fazê, e ainda deixaro um recado que é pro sinhô não se metê a besta. Desse jeito pode levá é bala.

Eu não conhecia esse lado imaginativo e poético de quem comecei a admitir como o meu morador Miguel. Sem saber, ele me ajudou muitíssimo com as suas palavras inventivas de quem pretendia por gasolina na fogueira.

O Sr Zé Firmino deve ter voltado para casa sentindo-se mais calmo, reflexivo, ajuizado, pois no percurso de Aldeia para Recife passou pelo oitão da minha casa, e nem um só tiro ele deu. Teria o resto do domingo para se aquietar, e pensar na besteira que fez.

Amanheceu então a segunda feira. Cheguei ao meu local de trabalho, outra vez tão calmo quanto sou. Minha paciência sempre teve visibilidade para os meus amigos e colegas de trabalho. Até tornara-se proverbial, pois diziam eles: agora não é mais paciência de Jó, é paciência de Jócá.

Talvez daí o espanto do colega que, tendo chegado um pouco antes, atendeu a uma ligação do Zé Firmino para mim. O Zé Firmino devia mesmo estar ainda muito abafado, pois coube ao meu colega Zé Paulo, a quem costumava chamar de Zen Paulo, ouvir-lhe o longo e dolorido desabafo.

O olhar do Zen Paulo para mim, avisando da ligação, não escondia o que estava pensando: ou o cidadão que acaba de ligar está pirado, ou temos um doido por aqui.

Já tocava outra vez o telefone, e de novo era o Zé Firmino que insistia em falar comigo.

Atendi, e ele logo a perguntar:
- É o Sr Jucá?
- É sim. E nada tenho para falar com o senhor.

Encerrei a curta ligação dizendo: arranje um advogado, e que ele se entenda com o meu. Com o senhor não quero conversa. E desfiz a ligação.

Contactado por mim sobre a questão, o assunto passou a ser tratado pelos nossos advogados. 

Como o advogado do Zé Firmino era do Sindicato dos Canavieiros, a reunião foi no antigo prédio do Sindicato dos Canavieiros de Pernambuco. Comparecemos os quatro. Nós e nossos advogados.

Entrei mudo e saí calado. Até pensei em levar um livro para ler enquanto rolasse a reunião. Embora não tenha feito isso, sequer olhei na cara de ninguém. Estava convencido de que esta deveria ser a minha atitude.

Dois ou três dias depois, ligou-me o meu advogado, que me informou o seguinte: conversei amistosamente com o meu colega advogado sindicalista e defensor da outra parte. Causou-lhe uma forte impressão que ele não conseguisse associar você, tal como o percebeu durante a nossa reunião, ao autor de tudo que o Zé Firmino diz que você fez. 

Prosseguiu: sendo assim ele me disse que andou aconselhando o Zé Firmino: "Zé, melhor você abrir do seu olho! Gente assim é o tipo mais perigoso que tem! Esse teu vizinho parece calmo, tranquilo, incapaz de matar uma mosca! Mas, de repente, você sabe muito bem do que estou falando...

O resultado dessa conversa é previsível! O Zé Firmino aceitou as minhas condições para reerguer a cerca. Seria construída do modo como antes eu concordara que fosse feita, e ele assumiria o prejuízo decorrente da danificação daquela que irregularmente fizera, admitindo assim o erro da sua ação.

O final dessa história reservaria ainda uma grande surpresa, pois alguns anos se passaram, indenizei o velho casal de moradores, perdi meu interesse por aquele terreno e quase nem mais por lá eu aparecia.

Foi quando comecei a receber alguns telefonemas anônimos, do anônimo Zé Firmino que sem querer revelar-se, me oferecia uma excelente proposta de compra para o terreno.

Temeu que a ele eu não vendesse, sabendo de quem se tratava. A sua vontade de comprar-me o terreno, porém, rivalizava com a minha vontade de vendê-lo.

O preço oferecido justificava esses nossos sentimentos. Impus a condição de pagamento à vista e em espécie, o que a princípio ele relutou em aceitar.

Mas não relutou por muito tempo! Acompanhado de uma testemunha e trazendo os dois uma sacola, passamos juntos agradáveis momentos contando dinheiro. Dinheiro recebido, recibo passado, fui depois levá-los à porta e até hoje nunca mais os vi. 

Nenhum comentário:

O Sexto Sentido.

Uma Volta ao Mundo, Dançando!