Em pleno vale, no município de São Lourenço, estão as ruínas de um antigo engenho. Engenho de cana de açúcar, símbolo de uma era de muita prosperidade agrícola de Pernambuco no nosso período colonial.
Situado em terras de Aldeia, bairro rural da grande Recife, que abrange os municípios de Camaragibe e São Lourenço.
Cheguei muito cedo a esse belo lugar, onde além do frescor da mata, o tempo estava muito nublado e soprava uma brisa típica, prenúncio de muita chuva.
Do alto, a maravilhosa vista panorâmica de um imenso vale verdejante. Nele, lá embaixo, em algum ponto daquele imenso espaço, funcionara o velho engenho de São Lourenço, cujo último proprietário há muito morrera.
Restava o seu filho, herdeiro de todas aquelas terras e outras mais, por quem ali eu esperava, na condição de um possível comprador de um pedacinho daquele chão.
Chegou enfim o Dr Mário Gouveia. Por pouco não foi de terno que ele por lá apareceu. Roupa branca, tão branca quanto os seus poucos cabelos. Calvo, muito calvo, suas grandes orelhas ouviam muito mal, e ele aparentava um tanto quanto avançado na idade.
Sua finalidade ali era vender um pouco mais das suas terras, terras que também foram dos seus ancestrais. Sabia muito bem como fazê-lo, e a objetividade era um dos seus segredos. O espírito da oferta era a de que "lhe cabe pegar ou largar. E se largar, você nem imagina o quanto vai se arrepender!!!"
Aquele homem vendia terras à semelhança do modo que vi meu pai vender tecidos. Assim como a peça da cambraia de linho inglês, cada novo pedaço de terra a ser vendido devia seguir o imediatamente anterior.
Mas a venda daquelas terras tinha lá sua especificidade. O chão à venda começava da cerca do vizinho à esquerda, que fora o comprador imediatamente anterior.
O limite da frente e dos fundos do terreno a ser vendido, eram respectivamente a estrada de terra de penetração daquela área, de traçado irregular, e o riacho que cortava o vale. A distância entre a estrada de penetração e o riacho era variável, dependendo da localização.
Perguntou-me o Dr Mário Gouveia:
- Quantos hectares de terra você quer?
Respondi, não tão baixo que pudesse parecer humilde, e nem tão alto que excedesse a necessidade:
- Só um!
Prosseguiu então o Dr Mário:
- Você disse um? Nesse local aqui, sei não! Com sorte pode até ser que um hectare dê uma largura boa... O risco, porém, é ficar só uma nesguinha! Desse jeito melhor é comprar dois ou três hectares, para ficar com uma boa largura de frente.
Concordei em chamar um topógrafo. Essa era uma questão que precisava ser logo esclarecida.
Para a compra de um hectare, ficavam 36 m de frente. Equivalia a comprar um lote de 36 m X 60 m em área plana, com muitas fruteiras, entre elas algumas antigas jaqueiras, tudo situado em uma espécie de platô.
De lá tinha-se a vista belíssima do vale, e de quebra o terreno prosseguia em descida acentuada em direção ao vale distante, até alcançar o riacho, onde há muito o terreno já havia se tornado plano outra vez.
Nada mal, pensei com meus botões!
Delimitado o até aí meu provável futuro terreno, resolvi melhor explorá-lo. A sua área total acabara por extrapolar um pouco de um hectare, e o seu comprimento total chegou a ultrapassar os 400 m.
Desci até o riacho, seguindo uma trilha que encontrei por dentro do mato. Às margens do riacho, em área do quase meu terreno, descobri que havia uma pequena casa de taipa.
Na casa um casal de velhos que embora amistosos, não conseguiam disfarçar certa expectativa em relação à minha presença. Foi assim que conheci o Sr Miguel e a Dona Maria.
Dialoguei com eles, e era sempre o Sr Miguel quem respondia.
- Bom dia!
- Bons dias Sô!
- Eu me chamo Jucá. E vocês?
- Meu nome é Migué e essa é a minha véia Maria. Não sêmo casado não, mas nós vévi junto faz muitos ano.
- Moram aqui?
- Há quarenta e quatro ano.
- Moram sós ou tem mais alguém com vocês?
- Tem o Zé, mas é promode assim dizer! É filho só de minha véia. É alcólito. Bebe muito! Vive no mundo e nunca vem ver nós.
- Bom! Era minha intenção comprar por aqui esse terreno!
- O Sr pode comprar sem medo! Eu já pensava mesmo em ir embora! Viver cercado, eu não vivo. É o senhor comprando e nós saindo. Vamo embora daqui pra nunca mais voltar...
A descoberta foi para mim "água na fervura!". Voltaria então a falar com o Dr Mário, em uma daquelas conversas em alto e bom som.
- Dr Mário, há moradores no seu terreno!
- O quê?
- Há moradores no seu terreno!
- Fale mais alto.
- Moradores! Uma casa e nela pessoas morando. Seu terreno! Dentro do seu terreno!
- Ah!!! (exclamou Dr Mário, acompanhado de um movimento das mãos, de herança tipicamente européia). Invasores! Invasores é o que são! Antigos empregados do engenho que terminados os trabalhos por aí ficaram. Ficaram em terras que não são deles. Vagabundos! Aproveitadores! Expulse-os. Diga para irem embora!
De um lado, deparei-me então com os resquícios da visão senhorial dos donos de engenho, do outro, eu saberia depois, deparei-me com a sagacidade e esperteza dos muito explorados.
A mim não faria mal que ali continuasse a morar aquele velho e simpático casal. Ir embora, só caberia a eles decidir. Quisessem porém ficar, por mim também poderia. A mim bastava a área onde um dia pretendia construir uma casa. Pensei: havia espaço para todos.
Comprei o terreno. Dividi o pagamento em umas poucas parcelas. Era no seu escritório no centro do Recife, Edifício Lar Brasileiro, que o Dr Mário me esperava para receber os pagamentos.
- Dr Mário, estou aqui para pagar.
- Olá, queira sentar, vou preparar o recibo.
- Dr Mário, e sobre a escritura?
- O quê? Fale mais alto.
Não tive, entretanto, dificuldades maiores no trato com o Dr Mário Gouveia, que foi muito correto comigo. Logo o terreno tornou-se meu. Começariam então as minhas reais dificuldades.
Minhas idas ao terreno no início eram muito frequentes. Por vezes, nem sinal dos dois velhinhos, que apesar da idade aparentavam vigor e saúde.
Com o tempo, encontrei na parte de cima do terreno, a que de fato me interessava, uma vasta plantação de macaxeiras. O Sr Miguel lá estava no meio dela. Veio em minha direção, com ensaiada naturalidade, dizer: "nem falei com o patrão se podia plantar, mas como o patrão vem pouco aqui, achei que não ia se incomodar!"
Primeiro senti que eu era um sem terra, igual a Dona Maria e Sr Miguel.
Depois percebi que as terras tinham dois donos, e o outro dono, pelas implicações trabalhistas que isso uma vez caracterizado poderia me acarretar, assumira-me como patrão.
Arrefeci o ânimo de cercar o limite direito do terreno, e até mesmo diminuí as visitas que ao terreno eu tinha me acostumado a fazer.
Ir para lá era encontrar o Sr Miguel, sempre falsamente solícito, separando frutas colhidas do próprio terreno para me presentear.
Na sequência, aprendeu onde eu morava. Em muitos domingos, cedo da manhã, eu era avisado da presença deles, isso quando já não os avistava aproximando-se.
Dessas vezes era Dona Maria quem mais falava. Falava sobre seu velho Miguel, sua velhice, suas doenças, sua fraqueza, enfim, sua impossibilidade de continuar ali onde moravam.
Não raro Sr Miguel adoecia, e era a mim que vinham avisar. Por vezes levei-o para internar, e não era qualquer hospital que o aceitava. O Sr Miguel só podia se internar em hospitais que aceitassem Funrural.
Um dia fui visitar o terreno, e imaginem o susto que tomei! Miguel e Maria haviam se instalado na parte principal do terreno. Exatamente no lugar onde eu pensava um dia construir a minha casa, agora já havia uma. Verdade que uma casa de taipa, mas bem maior que aquela que os dois abandonaram às margens do riacho.
Disseram: "O jeito foi assim!" Falou primeiro o Sr Miguel. "E apoi!" emendou Dona Maria: Miguel já não conseguia ficar subindo e descendo essa ribanceira. O jeito que teve foi nós vir morar aqui em cima.
Finalmente, criando coragem, e talvez por achar que eu era muito ruim de entender subterfúgios, o Sr Miguel resolveu ir direto ao ponto. Usou para isso de uma dramaticidade, que não sei se espontânea ou copiada de alguém. Ele fez sinal para que eu dele me aproximasse. Tinha algo para me segredar no ouvido. Do jeito que costumam fazer, entre si, os políticos.
Disse então o Sr Miguel:
- É só o patrão me dar uma casinha de alvenaria, em um bairro bom, numa rua calçada com paralelepípedo, luz elétrica e água encanada, e nós sai. E nós desse jeito quer sair o quanto antes! O que nós não quer, é ficar aqui e atrapalhar o patrão.
Pela idade que eles tinham e pela grande paciência que eu tenho, como uma primeira possível solução pensei em aliar-me ao tempo. Adiaria meus planos de utilização do terreno, esperando o quanto necessário fosse, até que o bondoso São Pedro os recebesse nos portões do céu.
Uma segunda solução, mais imediatista, também me ocorreu: venderia o terreno. Pensei em anunciá-lo assim: Vende-se bela área em Aldeia com muitas fruteiras, inclusive jaqueiras, e esplendorosa vista para um belíssimo vale. Tudo isso já com dois moradores!
Das duas soluções escolhi uma terceira. Comprar-lhes uma casa. No entanto, não decidi tão rápido por esta solução. Diz-se que o tempo e o silêncio gostam de ajudar aos que buscam a melhor saída.
Enquanto eu ainda decidia o que fazer, a eles pode até ter parecido que eu passara a contar com a possibilidade dos seus encontros com São Pedro.
Sr Miguel e Dona Maria passaram a dar mostras de impaciência. Suas visitas à minha casa tornaram-se ainda mais frequentes. Sentavam mudos no terraço, emprestando ao ambiente suas presenças indagativas. Essa passou a ser a estratégia, que eu não diria final.
Certo dia, quando já intuíra que melhor seria comprar-lhes uma casa, chegaram outra vez ao meu terraço Dona Maria e Sr Miguel. Há muito já não traziam frutas, e jacas, nem pensar. Vinham contudo, desta vez, com uma grande novidade.
Disse o Sr Miguel: encontramos uma casa. O dono quer vender. É do jeito que nós quer. E não é muito longe daqui. É em Tabatinga. É de alvenaria, fica em rua calçada, tem luz elétrica e água encanada. Tem até uma varanda onde nós pode criar umas galinhas.
Comprei a casa. Mudaram-se os dois para lá, assim que lhes entreguei a chave, antes mesmo que lhes pudesse entregar a escritura, que, afinal, sempre demora um pouco.
Recorri a um advogado, que cuidou dos aspectos jurídicos que me assegurassem, em troca daquela casa, o meu merecido sossego.
Agora sim, pensei, sentirei um grande alívio.
A mim só ficaria faltando entregar-lhes a escritura da casa, mas até isto eu já havia providenciado.
Enquanto esperava o cartório preparar a escritura, todos os domingos eu recebia a visita do Sr Miguel e de Dona Maria, que por sinal agora moravam mais perto. Vinham me perguntar: Cadê a escritura?
Eis que amanheceu mais um domingo, e os velhinhos desta vez não apareceram. No dia seguinte, ao chegar em casa voltando do trabalho, tive a notícia: o Sr Miguel morreu!
Deu tempo a que eu comparecesse ao seu velório. Ele não passara bem no domingo, e na segunda feira piorou de repente, vindo a falecer.
Uma vizinha, cujo próprio caixão vinha pagando fazia quase 18 meses, cedeu-o generosamente para ele. No velório ela fazia questão de contar toda essa história, orgulhosa de que melhor doar o caixão, do que ter de usá-lo.
Uma semana depois, ao amanhecer de mais um domingo, sentei-me no terraço, e fiquei entregue aos meus pensamentos: pobre Sr Miguel! Descansou ele, e descansei eu!
Eis então que surge, em direção a mim, a figura magra e entristecida da Dona Maria. Agora sozinha e alquebrada. Tão logo ela se aproximou, fui ao encontro dela e perguntei:
- E então Dona Maria? O que aconteceu?
Respondeu Dona Maria:
- É o Migué seu Jucá! Migué tá me aparecendo. E ele quer a escritura!
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