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domingo, 15 de março de 2015

O Golpe de Vista.


Eu era tão pequeno que a motocicleta do meu tio parecia enorme. Não tenho mais como saber qual era mesmo a sua marca, o seu modelo ou quantidade de cilindradas.

Dali foi onde surgiu em mim o interesse pelas motos, que tenho até hoje.

Não só a observava com encanto e apreciava passar-lhe o pano, como aguardava com ansiedade por um momento muito extraordinário!

Não era com muita frequência mas obedecia certa periodicidade, que o meu tio Chiquinho abastecia a sua moto.

Nesses dias, com a prévia anuência dos meus pais, levava-me com ele na garupa para este breve passeio.

A bomba de gasolina não era longe, e o breve passeio pelas ruas quase desertas do Crato, logo terminava.

Eram contudo minutos de grande excitação, pelos quais longamente eu esperava, pois motos costumam ser econômicas.

O tio Chiquinho era um dos irmãos mais novos da minha mãe. À época, tinha pouco mais de 20 anos. Ajudava meu pai na loja, e morava em nossa casa.

Lembro-me em seus mínimos detalhes, dos óculos que ele usava! Não é pelo prodígio da memória, e sim pelas fotos que dele ainda temos com eles.

A sua miopia, com tradição familiar de astigmatismo no olho direito, tornava meu tio dependente, e por isso mesmo inseparável dos seus belos óculos.

Eles continuariam modernos nos dias atuais. Provavelmente os encomendara e comprara na capital. Em Fortaleza.

Das lentes não se poderia dizer que eram "fundo de garrafa". Também não eram tão finas e leves como a tecnologia atual já permite fabricar. 

Os aros finos e delicados, abraçavam aquelas duas lentes poderosas, disfarçando a existência de armação. Eu mesmo, já adulto, usei por uns tempos uns óculos desses! Homenagem ao tio Chiquinho?

A nossa casa tinha uma varanda interna, onde era comum vê-lo sentado em uma cadeira de balanço, concentrado em alguma leitura.

Certo dia, dividíamos o lugar, que até hoje lembro como meu verdadeiro "Playground". Ele com as suas leituras, eu com as minhas brincadeiras.

A propósito, sempre achei que eu tivera mais brinquedos na minha infância, do que tivera o meu pai. Assim, nada mais natural que alguns dos brinquedos que dele ganhei, parecessem pertencer aos dois.

Era o caso do trenzinho elétrico cujos trilhos ocupavam toda sala, e até precisava ter por perto uma tomada onde ligar.

Guardo a lembrança de como meu pai se empenhava cada vez que o montava, para fazê-lo funcionar. A admiração pelos resultados era conjunta, e passávamos horas a vê-lo andar.

Alguns outros brinquedos, assim como o trenzinho, e esses com maior razão, eram guardados em lugar por mim desconhecido, logo que acabávamos de usar.

Eram os brinquedos que, por oferecerem riscos, só estando junto o meu pai é que eu com eles poderia brincar.

Havia arco e flecha, pistola de espoletas chamada de "pega ladrão" que poderia assustar, e sobretudo a rainha dos brinquedos perigosos. Uma pistola do tipo Mauser, uma cópia daquelas de fabricação alemã, que disparava pequenos chumbinhos esféricos impulsionados por ar comprimido.

Havia um alvo no qual atirávamos até quase desmanchá-lo. Aqui para nós, depois de andar de moto, esse era o meu passatempo preferido.

Penso que esse meu interesse bélico infantil aguçou a minha curiosidade de descobrir o esconderijo onde, terminados os trabalhos, a pistola era cuidadosamente guardada.

Como descobri, não saberia dizer! Foi daquelas coisas que o inconsciente guarda só para si. É claro que ninguém me ajudou!  Também não saberia precisar se essa foi  a minha primeira transgressão. Talvez tenha sido!

Foi de cima de um guarda roupa, o guarda roupa do segundo quarto, de onde me apoderei da pistola. Em casa estavam apenas meu tio, minha mãe e eu. Mas naquela varanda, somente eu e meu tio.

Naquela época, fazia uns sete anos que terminara a segunda guerra mundial. Talvez eu sem saber ainda vivia sob a sua influência e inspiração.

Aproximei-me de meu tio, que continuava entregue por completo à leitura, vindo por trás. Vagaroso, sorrateiro, trazia a pistola segurada pelas duas pequenas mãos. Apontava na sua direção o longo cano da arma, que de tão perfeita imitação, até mira ela tinha.

A concentração do meu tio e o meu avanço silencioso, foi a combinação ideal para que tudo desse muito errado.

Sei lá que tipo de susto eu queria nele fazer, que atirei. Atirei enviesado, mas atirei.

A dramaticidade da cena que se seguiu, certamente me ajudou a dela me lembrar para sempre.

De repente meu tio estava de pé, mãos nos olhos, um livro caído, e um par de óculos espatifados pelo chumbo no chão.

Minha mãe devia estar por perto, pois apareceu do nada, inserindo-se na cena.

Dizia:

- Tire as mãos dos olhos Chiquinho, preciso ver o que lhe aconteceu!

Como eram controlados o meu tio e a minha mãe! Admirei a resignação dos dois, diante de um fato consumado. Eu só não podia era imaginar o que eles pensavam naquele momento. Hoje sei, pensavam o mesmo que você, agora ao ler.

Quanto a mim, naquela hora, menos "aperriado" é que eu não estava. E lembro muito bem o que diante daquele momento tão trágico, pensava: nessa eu me lasquei! Nunca mais ele me levará para passear de moto.

Meu tio perdeu os seus belos óculos. Seus olhos porém permaneceram milagrosamente intactos.

Um dos nossos anjos da guarda pode ter se distraído. Estivessem os dois atentos, e eu nem teria atirado.
Por isso acho que o anjo atento era o meu. Ele estava só brincando! O que lia, quem sabe, adormeceu.

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