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quinta-feira, 19 de março de 2015

A Pena Capital.


Os rigores da educação doméstica antiga nem sempre me desestimularam a praticar certas transgressões.

Depois que me pus a salvo dos castigos físicos que dela faziam parte, pude entendê-los como uma expressão do amor materno por mim. E como minha querida mãe me amava!

Ao meu pai cabiam apenas as admoestações verbais para chamar à razão, apontar os limites... No máximo avançava a um dos estágios imediatamente seguintes dos corretivos.

Embora um dos castigos tradicionais fosse privar a criança de fazer algo de que gosta, ou obrigá-la a fazer o que desgosta, havia um outro também muito utilizado.

Era o da "cadeirinha do castigo". Mandada confeccionar em muito boa madeira, era tão pequena que mesmo um antropólogo inexperiente concluiria acertadamente que seu uso era para crianças ainda muito novas.

Como ela foi feita para durar, ainda a tenho comigo! Nela, já em tempos modernos, o meu pai escreveria com orgulho: por esta cadeira passaram os "bacharéis" Maria Joselice, José Jucá Jr e José Ronaldo.

Havia porém um castigo mais temido, felizmente menos frequente, mas cuja aplicação poderia acontecer a qualquer momento. Tudo dependia da gravidade da falta.

Eu diria que no código penal de alguns países, aquilo para mim correspondia à pena de morte. Estou me referindo à palmatória.

A palmatória foi usada no sistema educacional inglês, até muito depois de ser abolida lá em casa. O contrário do que aconteceu com a escravidão, outra mancha negra, e que no Brasil acabaria muito depois.

Do meu pai nunca levei sequer uma palmada. Cabia à minha mãe transitar com desenvoltura na aplicação de seja lá qual fosse a pena. Manobrava com destreza a palmatória.

Justiça se faça, ninguém mandou confeccionar nenhuma. Era usada uma tradicional escova de madeira de cerdas flácidas, daquelas para tirar o pó do vestuário. Naturalmente, batia-se com as suas costas. Ela ficava separada, em lugar de fácil acesso, para uso exclusivo com esse total desvio de função.

Um dia, não lembro o que minha irmã aprontou, que foi condenada sumariamente à palmatória. Minha mãe mandou que eu fosse buscá-la. Buscar a minha irmã, não! Buscar a palmatória. Fui até onde era guardado esse instrumento de "dar bolos", e de lá, apanhando-a, dirigi-me ao outro lado da casa, de onde a atirei sobre o telhado.

Nesse dia ninguém daria conta de achar onde estava a maldita palmatória. Joselice ficou me devendo essa. Ao longo da vida, me pagaria com sobra.

As ameaças que uma educação à antiga impunha, face à sua severidade, vieram a ressaltar a bravura de muitos dos educandos.

Fui um garoto quieto, e o temperamento calmo que tenho, veio mesmo comigo. Ele já se manifestara de criança. As minhas traquinagens infantis, por pior que fossem, as fiz tranquilamente! 

Intriga-me como eu podia praticá-las, conhecendo muito bem quais seriam as consequências com as quais arcaria. Fazer o que tinha vontade, para mim era às vezes irresistível. O importante era fazer, e não ficar pensando no que viria depois.

Um belo exemplo disso, e melhor seria dizer que um exemplo clássico, aconteceu em certo dia quando minha mãe recebeu a visita da madrasta de meu pai, a minha madrinha Loló.

Aquela se tornaria para todos nós uma manhã de fortes emoções.

Duas cadeiras já as esperavam onde depois de sentar conversariam por horas. Depois de acomodar a minha madrinha-avó, minha mãe lhe ofereceu um cafezinho passado na hora. Ela aceitou. Enquanto a minha mãe foi à cozinha mandar fazer o café, fiz companhia na sala à minha avó, que a mim perguntou essas coisas que toda avó pergunta ao netos.

Minha mãe logo estava de volta. Posicionada para sentar, já iniciava uma conversa, sob a minha cuidadosa atenção. O que ia acontecer em seguida, eu há muito havia planejado. Era chegada a hora de executar.

Finalmente ao sentar, o que nem demorou tanto, mas para mim pareceu uma eternidade, sincronizei os momentos, puxando-lhe de tal forma a cadeira, que a minha mãe sentou no chão.

Seguiu-se o natural alvoroço. Mistura de sentimentos dos atores em cena, em papéis tão distintos! Até eu empenhei-me em ajudar a levantá-la. Algo na linha de ajudar a vítima em lugar de evadir-se do local. Tão pequeno e já conjugava o verbo atenuar. 

Reergueu-se minha mãe, sem perder a elegância. Ela sempre teve uma postura muito ereta, que se diria "espigada". Mesmo depois de soerguida, mantinha as mãos nos quadris, e uma expressão enigmática de dor e incredulidade.

Logo a nossa boa Maria, que sempre faria parte da família, a nos acompanhar nos momentos de alegria e de tristeza, da cozinha veio com aquele que nessas horas logo se faz presente: o copo d'água. Aos poucos as coisas foram serenando.

Foi quando ouvi da minha avó, as palavras que ficariam gravadas na minha memória, para sempre. Como desejei que ela tivesse permanecido calada. Do jeito que estavam todos até há pouco: mudos. Quebrar o silêncio daquela forma foi para mim imperdoável.

A minha madrinha, voltando-se para a minha mãe, falou:

- Alice, não vá fazer nada com o menino!

A visita não duraria o tempo que eu desejava. Por mim ela se prolongaria por todo o dia. Minha avó só ficou a mais o tempo necessário para se assegurar de que a minha mãe estava bem.

Meus piores momentos foram enquanto sentia a proximidade do fim daquela presença. Finalmente, ao despedirem-se, assistir à minha mãe levar a minha avó à porta, foi para mim uma agonia equivalente a de alguém no corredor da morte. 

Minha avó talvez ainda nem tivesse dobrado a esquina, e eu já apanhava. E bem mais do que das outras vezes. 

Trinquei os dentes e deixei vir às mãos a dor e o ardor que eu já conhecia. Mas dessa vez pretendi suportar sem chorar. Foi um teste por demais difícil de superar. Por pouco não fui derrotado. Mas venci!

O trancelim que minha mãe usava, tinha uma medalha grande, de prata, com a imagem de Santa Terezinha, santa de sua devoção. Pode ser que tenha sido de propósito que ela voltou-a para as costas, para melhor bater. Em seguida minha mãe iria à igreja, para acompanhar uma novena.

Tudo isso junto me deixou confuso! Principalmente: como se bate assim no filho e se vai depois para a igreja rezar?

Ao sair, minha mãe ainda tinha a medalha voltada para as costas. Esquecera de corrigir o trancelim pondo a medalha para a frente. Ela ficara mesmo muito transtornada! Mas eu também fiquei! Pensei: pois é mesmo com a medalha virada que ela sai, porque avisar é que eu não vou.

Algo formidável porém tinha acabado de acontecer. Disso só muito depois eu me daria conta. Aquela fora a última vez que apanhei. 

Minha mãe me castigava para educar. Jamais por impaciência, por sua própria irritação, raiva ou descontrole. 

Ela acabara de descobrir que bater em mim já não adiantava.

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