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sexta-feira, 13 de março de 2015

Ela é Sistêmica!


Início de um novo projeto em plena era Collor. Não! Não me refiro a nenhum projeto governamental. É sobre um projeto pessoal voltado para a sobrevivência em período de um Brasil turbulento, que culminaria até com o confisco de poupanças.

Para começar, os entendimentos de base entre os dois sócios, sobre questões de princípios. Reafirmaríamos ali a nossa visão proba de como conduzir um negócio. Seria como se deve conduzir a vida. Com honestidade, coragem, determinação... Faríamos tudo muito direitinho! Conosco os pontos seriam todos sobre os is.

Nossa micro-empresa, naquele instante fundada ainda que só na conversa, logo sairia do papel para ser como um belo país sem corrupção.

Pouco sabíamos sobre restaurantes, exceto consultar o cardápio, nos servir à mesa e depois pagar a conta. Pagar a conta, que agora queríamos passar a receber.

O compromisso seguinte seria portanto aprender o ofício. Tínhamos que saber tudo sobre o ramo. E aprender bem, para fazer o melhor que pudéssemos. Virara obsessão fazer tudo certinho. Bem direitinho.

Um primeiro exemplo da nossa preocupação com a honestidade, veio através do meu sócio Hibernon.

Conseguíramos vencer todos os obstáculos iniciais, e o restaurante finalmente fora inaugurado. Atraía cada vez mais gente, preenchendo uma lacuna de cuja falta ressentiam-se os moradores de Aldeia.

Foi quando precisamos de mais garçons!

Presenciei o seguinte diálogo entre um dos nossos funcionários e Hibernon:

- Eufrásio, você conhece alguém para a nossa vaga de garçom?

Eufrásio pareceu gostar da pergunta:

- Se tenho?!!! Tenho sim senhor! Rapaz sério, trabalhador, já trabalhou de garçom, não bebe, não fuma, nem dança! Até crente ele é.

E na sua preocupação com questões de principio, meu sócio perguntou:

- Mas, e ele rouba?

A indagação jocosa tinha raiz na nossa realidade. Desconfiar para melhor se proteger, tornara-se inerente a administrar.

Antes de "abrir as portas", fizéramos até uma breve imersão no mundo criativo e surrupiador de garçons desonestos. Um mundo que até então desconhecíamos. Aquilo nos tornou culturalmente enriquecidos, pelo conhecimento de variados truques que costumavam usar para roubar.

Apesar da nossa boa disposição, haveríamos no entanto de falhar em algum ponto. Nosso talão para expedir notas fiscais, quando algum cliente as solicitasse, seria o nosso calcanhar de aquiles.

O talão estava sempre à mão, e só não o usávamos com frequência porque dependia de que o próprio cliente dela necessitasse.

Sabe-se que restaurantes pagam os seus impostos na compra dos insumos básicos. Emitir ou não a nota fiscal, do ponto de vista da tributação, não fazia nenhuma diferença para o estabelecimento.

Certo dia, precisamos demitir um garçom. Insatisfeito com a demissão, ele dirigiu-se ao órgão estadual fiscalizador e nos denunciou por uso inadequado das notas fiscais.

Garçom "experiente", em lugar de nos alertar que estávamos utilizando os talonários errados, guardou a irregularidade para usá-la contra nós, em caso de necessidade de vingança. Deu certo! De fato as notas fiscais que vínhamos usando, não eram as determinadas pela SUNAB.

Não demorou muito para que fôssemos avisados, por um comerciante conhecido, de que estiveram no estabelecimento dele dois fiscais. Por lá, fora coisa pouca! O que queriam mesmo era "bola". A eles tinha pago R$ 1000,00 e com isso resolvido todo o problema. Acrescentou que eles haviam dito que visitariam também o nosso restaurante. O Restaurante Tempo&Tempero.

Por que o nome do restaurante era Tempo&Tempero? Curiosamente, talvez para lembrar que na vida tudo é uma questão de tempo e tempero. 

Portanto não foi surpresa para o meu sócio Hibernon, quando os viu chegar. A sua certeza de que ali não havia nada de errado, certamente conferia-lhe aparência tão singular, que não seria exagero visualizar sobre a sua cabeça, uma auréola.

A abertura da conversa, foi quando um dos fiscais pediu para ver os talões de notas fiscais.

Confiante, talvez até com uma pontinha de vaidade por tanta correção nas nossas atividades, meu sócio disse para trazerem os talões.

Que decepção! Sentiu que estava longe de "abafar".

Disseram os fiscais, talvez os dois ao mesmo tempo:

- Não são esses.

Estaríamos multados! Pois é, ainda não estávamos! Mas dependeria do que a partir daí acontecesse.

Falou um dos fiscais:

- Essa infração é muito grave e a multa é muito elevada! Não vai ser nada bom para o negócio de vocês. A gente prefere não multar... A gente não está aqui para prejudicar ninguém. Mas, o senhor sabe, a gente pode ver aí como faz!

Rebateu de pronto Hibernon:

- Você faz a autuação!

Desconcertados:

- Como? Mas essa multa é muito alta!

Insistiu Hibernon:

- Se há uma infração, isso não importa. Vocês têm a obrigação de autuar.

O que se seguiu foi por demais embaraçoso e constrangedor. Conforme me contaria depois Hibernon, os fiscais não pareciam acostumados a autuar. Tiveram dificuldade em preencher o formulário de autuação. 

Foi surreal, pois acreditem que meu sócio precisou ajudá-los no seu trabalho. Pelo visto teria restado a eles apenas, ao final, datar e assinar.

A rigor, nos restaria aguardar a cobrança da multa, enquanto providenciávamos a substituição das notas fiscais.

Pairava contudo sobre nós, primeiro o desagrado, pois apesar de nosso empenho na prática do valor da correção fôramos multados. E, em segundo, sentíamos a urgente necessidade de conhecer o valor daquela multa, e as suas consequências.

Caí em campo. O meu primeiro passo foi conversar com o dono de um dos mais tradicionais restaurantes da cidade, o Restaurante Dona Carlota Joaquina. Experiente no ramo, ele era também, naquela ocasião, o presidente da Associação dos Donos de Restaurantes do Recife. 

Expliquei-lhe qual fora a infração, na qual por inexperiência havíamos incorrido.

Ele falou sem pestanejar:

- A multa é muito alta! Pode vir a fechar seu restaurante.

Perguntei:

- Nesse caso, o que o Sr acha que ainda posso fazer?

Respondeu:

- Dê bola aos fiscais!

Esta minha incursão inicial pelas esferas onde fui buscar esclarecimentos, deixou-me, além de mais frustrado, muito apreensivo. Agimos corretamente, agimos na contramão. 

Comunicado sobre essa minha conversa, Hibernon, fatalista e ao mesmo tempo realista, comentou:

- Se a gente tiver de fechar, a gente fecha!

Foi admitindo adotarmos, se necessário, essa solução, que voltei-me para a SUNAB. Ninguém melhor do que o Presidente da Sunab, para me esclarecer sobre o que realmente nos aguardava. 

Ter acesso a alguém em posição tão importante, me foi possível por um desses grandes golpes de sorte, que até reacendeu em mim as esperanças.

Nossos contatos foram telefônicos. No inicial, foi para eu saber que ele ainda não recebera aquela nossa autuação, e que dela ainda não havia tomado conhecimento. Em seguida, confirmou o valor elevado da multa, mas alertou para duas coisas.

O valor total a pagar poderia ser parcelado em até 36 meses. A alta inflação do país àquela época, haveria de, com o passar dos meses, tornar o pagamento das parcelas restantes mais accessíveis. Afinal os seus valores não eram corrigidos com a inflação. 

Solícito, pediu meus dados, e disse que para informações mais detalhadas, só depois que recebesse a autuação.

Continuamos, meu sócio e eu, vivendo a incerteza dessa situação, até quando, muitos dias depois, ligou-me o presidente da SUNAB com quem falara.

Disse ele:

- Você é um homem de sorte! Recebi sua autuação, e os fiscais erraram na data. Tendo a autuação ocorrido no início de um ano, dataram com dia e mês corretos, mas quanto ao ano, puseram o anterior. As multas prescrevem com um ano. Mandei arquivar a autuação.

Ao desligar, ainda pensei: tivesse Hibernon percebido o erro desses fiscais, e teria mandado corrigir.

A honestidade quase nos custou um sonho. Desta vez, porém, os céus se abriram para proteger os que não prevaricam.

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