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segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A Felicidade como uma Conquista Farmacêutica.


Existe, hoje em dia, uma assombração que ronda os consultórios dos psicólogos e dos psicanalistas: a Neurociência. Os psicólogos se sentem cada vez mais e temerosos de perder seus pacientes para psiquiatras que, por sua vez, têm acesso cada vez maior a um grande número de medicações para todos os tipos de desconforto psíquico. As relações entre Psicologia e Neurociência estão cada vez mais tensas.

Essa tensão reflete não apenas a indisponibilidade das pessoas para tratamentos mais longos através da psicoterapia como também um embate teórico. A Neurociência sustenta que a mente é um produto do cérebro e que o mental é redutível ao cerebral. Há uma espécie de consenso social velado acerca dessa posição que, no entanto, se choca frontalmente com nossas crenças religiosas mais arraigadas segundo as quais o cérebro é apenas o hospedeiro biológico de uma mente imortal.

Mas essa posição tropeça em vários obstáculos. Aproximamo-nos de saber como o cérebro pode produzir a mente e onde ela se localiza, mas há uma questão que permanece intratável: o problema da causação mental. Não sabemos como o mental pode interferir no físico, pois não sabemos se é o cérebro que controla a mente ou se ocorre o oposto. Os psiquiatras parecem apostar na primeira possibilidade e os psicólogos e psicanalistas na segunda. Psiquiatras apostam na medicação; psicanalistas, na psicoterapia.

Os neurocientistas nos dizem que teorias psicológicas fundadas em ideias como as de apego, ressentimento, assertividade etc., desaparecerão na medida em que formos identificando seus correlatos neurais. Sentimentos, como a angústia, a inveja, etc., seriam meras ilusões que cederiam através do tratamento pelo uso de medicamentos. A felicidade é, para muitos neurocientistas, uma conquista farmacêutica. Isso reflete a ideia de que se, não podemos mudar o mundo, é melhor que mudemos nosso cérebro.

São ideias assustadoras. Mas, o que deve soar como algo ainda mais paradoxal para os psicanalistas é o fato de elas terem sido preconizadas pelo próprio Freud. Numa passagem conhecida do Esboço de Psicanálise, ele afirmou que “o futuro talvez nos ensine a agir diretamente, com a ajuda de algumas substâncias químicas, sobre quantidades de energia e sua distribuição no aparelho psíquico. Por ora, dispomos somente da técnica psicanalítica”.

Será que os psicanalistas se esqueceram dessa passagem? Será que já estamos vivendo os dias nos quais já não precisamos da Psicanálise e da Psicoterapia? E nos quais admitiríamos, seja como freudianos, seja como psiquiatras, que a felicidade é só um estado cerebral fugaz. A Neurociência teria achado atalhos alternativos à técnica psicanalítica?

Uma das razões do desconforto dos psicanalistas com a Neurociência está no fato de que Freud é estudado como o autor de um texto cuja exegese não deve terminar nunca. A exegese do texto de Freud é praticada, nos dias de hoje, tanto pelos psicanalistas quanto por alguns filósofos. Isso tornou a Psicanálise um gueto que enfrenta uma condenação à morte por não se deixar transformar. Um psicanalista ortodoxo praticamente não tem o que dizer acerca de remédios psiquiátricos. Freudianos e lacanianos repudiam a neuropsicanálise.

Para os psicólogos cognitivo-comportamentais, o uso de drogas psiquiátricas é encarado com menos aversão, embora ainda cause algum mal-estar. A suspeita com relação ao uso dessas drogas recai no fato de elas ofuscarem a cognição, produzindo um conforto tão provisório quanto falso, que impede a percepção e a modificação do ambiente pelo sujeito. Esta condenação só não se torna mais explícita porque terapeutas cognitivos comportamentais fazem uma espécie de profissão de fé materialista, o que, num certo sentido, faz com que eles inclinem suas simpatias em direção ao materialismo e à Neurociência.

Ora, a razão para o embate entre, de um lado, psicólogos e psicanalistas e, de outro, os neurocientistas está no modo como se concebe o problema mente-cérebro e, mais precisamente, a causação mental. Tudo depende de apostar mais na mente ou no cérebro. Isso faz com que muitos psiquiatras vejam a Psicanálise como uma perfumaria herdada do passado e os psicanalistas, por sua vez, ataquem cada vez mais o reducionismo mente-cérebro. Mas esse é um falso embate. Tanto a medicação quanto a psicoterapia desempenham um papel fundamental na causação mental.

Estudos recentes mostraram que a Psicoterapia altera de maneira significativa o funcionamento e as conexões cerebrais. Constata-se uma mudança no fluxo sanguíneo do sistema límbico e que, em alguns casos, quando esta é associada à medicação, o aumento desse fluxo sanguíneo chega também aos gânglios basais. A ressonância magnética funcional e a tomografia axial mostram que, no caso de pacientes que sofrem de depressão, a terapia opera mudanças no córtex frontal, no córtex cingulado anterior e no hipocampo. Uma reorganização da conectividade cerebral ocorre após a Psicoterapia. Psicanálise, Psicoterapia e Neurociência convergem uando adotamos uma perspectiva naturalista acerca do mental.

Não há contradição entre o Freud da Psicoterapia e o mesmo Freud que nos seus escritos de maturidade defendeu abertamente a possibilidade de tratar as angústias e outros distúrbios através de medicação. Da mesma maneira, neurocientistas devem levar a sério o que disse seu colega Antonio Damásio, ao afirmar que “pode-se morrer de desgosto, tal qual na poesia”.


Fonte: Portal Ciência e Vida (Revista Filosofia).

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