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domingo, 1 de agosto de 2010

Três Contos de Rubem Alves - Conto 03/03: O Bolso.


Ah, tanta gente quer saber se acredito em Deus! Mas eu não  entendo tal pergunta porque não sei o que elas querem dizer com essa palavra "acreditar".

E se eu respondesse, elas receberiam apenas uma mentira, mesmo que eu falasse a verdade.

As palavras são enganosas... Palavras são bolsos vazios. à medida que a gente vai vivendo, vai pondo coisas dentro do bolso. O bolso que tem nome "Deus", fica cheio de quinquilharias que catamos pela vida.

Assim, quando falamos sobre Deus, não falamos sobre Deus. Falamos é sobre as coisas que guardamos dentro desse bolso. Se eu respondesse "acredito em Deus", a outra pessoa se enganaria pensando que dentro do meu bolso eu guardo as mesmas coisas que ela guarda no dela. E concluiria mais que sou uma boa pessoa. Mas, se tivesse dito que não acredito em Deus, ela concluiria que não sou uma boa pessoa.

Uma sugestão: vejam o filme A língua das mariposas. Ele se passa no final da guerra espanhola, quando o ditador se pôs a matar seus inimigos. Não importava que nada tivessem feito, que não tivessem disparado um tiro. Eles eram culpados de pensar diferente. Os soldados haviam chegado a uma aldeia e todos os diferentes (eles não iam à missa) estavam sendo presos para o fuzilamento. A aldeia inteira assistia às prisões daqueles que até a véspera tinham sido seus amigos. O padre sabia e, ao lado dos fuzis, se preparava para a absolvição dos pecados... E a acusação suprema de impiedade que era lançada aos caminhantes, "dali a pouco cadáveres", era: "Ateus!". Mas o que importava mesmo era que o generalíssimo Franco acreditava em Deus e era católico de comunhão diária. Muitas pessoas guardam mortes no bolso que tem o nome de Deus.

"Acreditar", no sentido comum que as religiões dão a essa palavra, refere-se a entidades que ninguém jamais viu, tais como anjos, pecados, santos, milagres, castigos divinos, inferno, céu, purgatório... No meu bolso sagrado, "acreditar" é palavra que não entra. Ele está cheio é com palavras que tem a ver com amor, mesmo que o objeto do meu amor não exista. Lembro-me das palavras de Valéry: "Que seria de nós sem o socorro das coisas que não existem?". Muitas coisas que não existem tem poder.

Eu amo a beleza da natureza, da música, de um poema, Amo a beleza das palavras de amor que os apaixonados trocam. Uma criança adormecida é, para mim, uma revelação, uma ocasião de espanto. Acho que Bachelard adoraria nos mesmos altares que eu: "A inquietação que temos pela criança", ele escreveu, "sustenta uma coragem invencível". Uma criança é um pequeno deus.

Para mim, a beleza é sagrada porque, ao experimentá-la, eu me sinto possuído pelo grande mistério que nos cerca. Sinto-me como uma aranha que constrói a sua teia sobre o abismo. O abismo está à volta de nós, o abismo está dentro de nós. Os fios da minha teia, eu os tiro de dentro de mim, são partes do meu corpo. Teço a minha teia com poesia e música.

De Deus só temos a suspeita. A beleza é a sombra de Deus no mundo. Sobre ele - ou ela - deve-se calar - muito embora as religiões sejam por demais tagarelas a seu respeito, havendo mesmo algumas que se acreditam possuidoras do monopólio das palavras certas - a que são o nome de dogmas.

Estou de acordo com Alberto Caeiro: "Pensar em Deus é desobedecer a Deus, porque Deus  quis que não o conhecêssemos...". Se ele quisesse que eu acreditasse nele, sem dúvida que viria falar comigo e entraria pela porta dizendo: "Aqui estou!".


E de acordo também com Walt Whitman: "E a raça humana eu digo: - Não seja curiosa a respeito de Deus, pois eu sou curioso sobre todas as coisas e não sou curioso sobre Deus. Não há palavra capaz de dizer quanto eu me sinto em paz perante Deus e a morte. Escuto e vejo Deus em todos objetos, embora de Deus mesmo eu não entenda nem um pouquinho". "Já percebi que estar com aqueles de quem gosto é quanto basta..." Buber concordaria. Estar junto é divino. Deus mora nos intervalos entre as pessoas que se amam.


Eu já nem tenho o bolso com o nome "Deus". Esse nome se presta a muitas confusões. Muitos bolsos estão cheios de escorpiões e vingança.


Amo a sombra de Deus. Mas ele mesmo eu nunca vi. Sou um ser humano limitado. Só sou capaz de amar as coisas que vejo, ouço, abraço, beijo...


Tenho, isso sim, um bolso com o nome de "O Grande Mistério". Mas não sei o que está dentro dele. Por vezes suspeito que é o meu coração...

Fonte: do Livro de Rubem Alves - Desfiz 75 anos.

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