Deputado Tiririca,
eleito
Deputado Federal,
pelo
Estado de São Paulo.
Você, Tiririca, não é o único, longe disso! Você não é o maior, e talvez até não mais mereça ser considerado o símbolo da Câmara dos Deputados Federais desse nosso lastimoso país. Isso é dedutível após assistirmos ao espetáculo degradante de ontem, que nos revelou a presença ali de uma indigência mental maior do que poderíamos imaginar. Você trocou de picadeiro, e de onde antes se fazia palhaço, agora nos faz de palhaços. Mas você só representa aqueles que o elegeram, e faz isso muito bem. A noite de ontem revelou uma incrível falta de representatividade da nossa sociedade em plenário, porque seria considerar a nossa sociedade de todo desprezível, se achasse o contrário. Claro que há bobinhos entre nós, e até esses têm o direito, em uma sociedade democrática, de terem por lá seus representantes. A ideia é porém que haja proporcionalidade na sua representação em plenário, pois que recuso-me a acreditar que somos o que assisti ontem, embora, é claro, exista quem assim o seja entre nós. Lembrei desse ensaio de Voltaire, que nos vem bem a propósito:
Um Ensaio de Voltaire (1779)
Em minhas viagens encontrei um velho Brâmane, homem muito sábio, cheio de espírito e muito erudito; ademais ele era rico e, por isso mesmo, ainda mais sábio, pois, não lhe faltando nada não precisava roubar ninguém. Sua casa era muito bem governada por três belas mulheres que se esforçavam por agradá-lo e, quando ele não estava se divertindo com elas, se ocupava da filosofia.
Perto de sua casa, que era bela, bem ornada, e ladeada de graciosos jardins, morava uma velha indiana, beata, imbecil, e muito pobre.
O Brâmane disse-me um dia:
- Queria nunca ter nascido.
Eu perguntei por quê, e ele respondeu:
- Há 40 anos eu estudo, são quarenta anos perdidos; ensino os outros, e tudo ignoro: tal estado enche minha alma de tanta humilhação e desgosto que minha vida me é insuportável. Nasci, vivo no tempo e não sei o que é o tempo; encontro-me num ponto entre duas eternidades, como dizem nossos sábios, e não tenho ideia do que seja a eternidade. Sou composto de matéria, penso, e jamais pude me instruir acerca daquilo que produz o pensamento; ignoro se meu entendimento é em mim uma simples faculdade, como a de andar ou diferir e se penso com minha cabeça do mesmo modo que pego meus objetos com minha mão. Não só o princípio do meu pensamento me é desconhecido, como o princípio de meus movimentos me é igualmente velado: não sei porque existo. Entretanto a cada dia perguntam-me sobre todos esses assuntos: é preciso responder às pessoas e eu não tenho nada que preste para lhes dizer; falo muito e fico confuso e envergonhado de mim depois de falar. É ainda pior quando me perguntam se Brahma foi feito por Vishnu ou se eles são eternos. Deus é testemunha de que eu não sei nada, e isso se percebe em minhas respostas. Dizem-me: - "Ah, meu reverendo pai, ensine-nos como o mal inunda a Terra". Minha inquietação é tão grande quanto a daqueles que fazem tal pergunta; às vezes digo-lhes que tudo vai o melhor possível; mas aqueles que foram arruinados ou mutilados na guerra não acreditam em nada disso, e eu tampouco: volto para casa oprimido por minha curiosidade e ignorância. Leio nossos livros antigos, e eles redobram minha trevas. Falo com meus companheiros: uns dizem que é preciso gozar a vida e escarnecer dos homens, outros pensam saber alguma coisa e se perdem em ideias extravagantes: tudo isso aumenta o doloroso sentimento que me assola. às vezes estou prestes a cair no desespero, quando penso que depois de todo o meu estudo, não sei nem de onde vim, nem o que sou, nem para onde vou, nem o que me tornarei.
O estado deste homem causou-me verdadeira pena: ninguém era tão razoável nem tinha tanta boa-fé quanto ele. Considerei que quanto mais ele tinha de luz em seu entendimento e de sensibilidade em seu coração, mais infeliz ele era.
No mesmo dia, vi a velha senhora que morava em sua vizinhança. Perguntei se nunca se afligia por não saber como era feita a sua alma. Ela não apenas não entendeu minha pergunta, como não havia nunca, nem por um minuto em sua vida, refletido sobre uma única das questões que atormentavam o brâmane; acreditava piamente nas metamorfoses de Vishnu e, uma vez que podia se lavar eventualmente com as águas do Ganges, considerava-se a mais feliz das mulheres.
Comovido com a felicidade dessa pobre criatura, voltei ao meu filósofo e lhe disse:
- O senhor não se envergonha de ser infeliz quando à sua porta há uma velha que vive como um autômato, que não pensa em nada e vive contente?
- Tem razão - respondeu ele. - Cem vezes pensei comigo que seria feliz se fosse tolo como minha vizinha e, contudo não desejo tal felicidade.
Essa resposta do meu brâmane me impressionou mais do que todo o resto: examinei a mim mesmo e vi que não queria ser feliz com a condição de ser imbecil.
Propus a questão a alguns filósofos e eles concordaram comigo.
- Há, entretanto, uma gritante contradição dessa maneira de pensar - dizia eu -, pois enfim, de que é que se trata? De ser feliz. Que importa se temos espírito ou se somos tolos? E tem mais: aqueles que são contentes têm certeza que são contentes; mas aqueles que raciocinam não têm tanta certeza de que raciocinam bem. Fica claro, portanto, que seria preciso escolher não ter o senso comum, por pouco que este contribua para o nosso mal-estar.
Todos aprovaram a minha opinião, e, entretanto, não encontrei ninguém que quisesse aceitar o negócio de tornar-se imbecil para ser feliz. Donde concluí que, se estimamos a felicidade, estimamos ainda mais a razão. Mas, depois de refletir, parece-me uma grande insensatez preferir a razão à felicidade. Então como se explica essa contradição? Como todas as outras. Sobre isso há muito que falar.